Ceticismo e credulidade: os dois lados da mesma moeda

Por , em 18.05.2014

Credulidade e ceticismo – os dois lados da mesma moeda.

Numa dessas pontes aéreas, fui abordado pelo meu vizinho de assento que coincidentemente tinha assistido uma de minhas palestras naquela cidade e que discordava veementemente de meu ponto de vista sobre a importância da ciência.

Eu sempre considero instigante ouvir esse tipo de crítica e provoquei meu interlocutor para que enumerasse os pontos fracos de minha fala.

Ele restringiu-se a vaticinar com grande rigor que eu era uma pessoa muito crédula, ou em outras palavras, que eu acreditava excessivamente na ciência como se esta fosse infalível.

Minha primeira reação foi de surpresa.  Depois de pânico.

Será que era essa a percepção que eu passara ao meu público depois de quase uma hora de palestra?

Ou aquele era um caso pontual?

Precisava tirar aquilo a limpo. Ele me oferecia uma oportunidade rara de rever minha prática.

Comuniquei ao meu interlocutor essa minha intenção e retirei os meus apontamentos da valise e o convidei para que lesse comigo o texto base da minha palestra a fim de que ele me apontasse sua discordância, coisa que ocorreu naturalmente ate chegarmos nessa parte:

“A Ciência não é perfeita e nem infalível, mas possui um mecanismo de busca e correção de suas imperfeições e falhas”.

“Entre esses mecanismos destacamos sempre que em ciência não se admite argumento de autoridade e nem verdades absolutas (aquelas que não possam ser falseadas ou refutadas)”.

“Existem verdades científicas consideradas incontestáveis hoje, porém, que podem ser contestadas amanhã, quando alguém surgir com uma nova prova ou uma nova evidência que  falseia ou  refuta a anterior estabelecendo então uma novo patamar para essa verdade”.

“Há que se entender, portanto, que todas as verdades científicas são provisórias e que estão em busca de contínuo aperfeiçoamento e superação com o uso desse mecanismo de autocorreção que está incluído no próprio método científico”.

Trecho que fatalmente contrariava a avaliação que ele fizera da minha fala.

Nesse momento ele interrompeu nossa leitura e mudou ligeiramente o seu discurso, num tom mais afável e paternal contrapôs que eu deveria ser mais flexível quanto à minha tomada de realidade e até citou Shakespeare naquela sua célebre frase “que existe muito mais entre o céu e a terra do que diz nossa vã filosofia”.

Busquei com emergência, para a paz da minha consciência, no meu texto o seguinte trecho em minha defesa:

 “Como educador eu desempenho esse papel de buscar a formação técnica para que o mundo de amanhã tenha cientistas capazes de propor soluções para os grandes problemas que afligem a humanidade”.

“A ciência é uma ferramenta para isso”.

“No entanto, a maior questão do século XXI, a meu ver, não é a ciência em si, ou a tecnologia, mas sim o uso de que fazemos dela”.

“Precisamos acima de tudo rever como estamos realizando nossa gestão da ciência e ter claro que a ciência não é a única maneira disponível para se conhecer o mundo que nos cerca”.

“Podemos também fundamentar nossa leitura de mundo por meio do poder do mito, do dogma da religião, do método da filosofia, da crença no senso comum ou por intermédio da estética da arte”.

“A escolha que cada um faz do viés pelo qual quer olhar o seu mundo é inerente à sua liberdade e à sua humanidade.”

Meu interlocutor leu essa parte meio contrafeito e não se dando por vencido assumiu um tom panfletário preconizando que o mundo estava cercado de pessoas crédulas como eu e que uma dose de ceticismo era necessária para que todos pudessem abrir os olhos para a realidade.

Fiquei estupefato. Já me rotularam de várias coisas – mas nunca de crédulo.

E então ele citou vários exemplos de mitologias modernas do tipo “o homem nunca fora à lua”, “a lua é oca e artificial e habitada por alienígenas”, “existe uma conspiração de cientistas para dominar o mundo”, “as vacinas fabricam pessoas vulneráveis”, etc.

Minha porção ficcionista adora teorias de conspirações e é comum nos intervalos de cafezinho de convenções e encontros científicos, ouvirmos muitas delas: Algumas extravagantes e hilárias, outras simplesmente apavorantes.

No entanto é sempre salutar você encontrar alguém que pensa diferente de você. Contrapor sua leitura de mundo.

Isso permite você rever e fundamentar o que você já sabe sobre o tema, questionar o que você pensa que sabe e identificar o que você ignora.

Enfim aquela nossa percepção de nós mesmos que passa pelo que denominamos metaconhecimento.

Evidentemente algumas dessas ideias, geralmente as mais radicais, são defendidas com unhas e dentes — e é esse fanatismo — e não o argumento em si, que é sempre perigoso.

Ter ideias originais e contrastantes sobre o mundo é uma coisa.

Agora, tentar impô-las aos demais como uma verdade absoluta — é outra bem diferente.

Assim, emendei o que eu tinha de informação sobre o assunto e apresentei algumas teorias da conspiração que meu interlocutor não conhecia — deixando claro que um não precisaria tentar convencer o outro.

O importante era o convite à reflexão que cada um já estava fazendo ao outro.

Afinal, ter opinião própria e o direito de exprimi-la é a liberdade máxima do ser humano.

Tanto quanto a liberdade de mudar de opinião.

Por fim chegamos ao nosso destino.

Meu interlocutor se despediu amigavelmente — e menos ansioso,  pude perceber — e ambos seguimos nossas direções.

No entanto eu ainda reflito sobre a experiência vivida.

Numa dessas reflexões entendi que muitas pessoas leigas em ciência, como esse meu vizinho de poltrona, são bombardeadas diariamente com toneladas de informações.

Algumas dessas informações apresentam uma chance maior de estarem mais próximas da verdade.  Outras não.

Como separar o joio do trigo?

Mais uma vez a pergunta determinante dessa década:

Em qual informação devo confiar?

Observei esse meu crítico de ocasião:

Sem dúvida ele buscava filtrar as informações que recebia. Mas, quais critérios ele utilizava?

De novo tenho observado a dúvida atroz construindo a desorientação.

Ninguém quer confiar mais nos indivíduos ou nas instituições, tamanha as desilusões sofridas.

E agora, em quem confiar?

Em Deus, naturalmente — dizem os místicos e religiosos.

Nas ciências alternativas — dizem os crentes de várias correntes “new age”.

Então é fácil entender o reclame místico dos bilhões de seres humanos que todos os dias enfrentam esse mesmo dilema e buscam crenças ou correntes ideológicas das mais diversas para aplacar suas dúvidas e insegurança.

Vemos de forma paradoxal o ceticismo alimentando a credulidade.

E é paradoxal, essa coexistência, entre ceticismo e credulidade como os dois lados da mesma moeda – longe de se encontrar um ponto de equilíbrio.

É claro que precisamos abrir nossa mente para edificarmos uma nova leitura de mundo.

Mas como bem disse o astrônomo Carl Sagan:

— Devemos abrir a mente, mas não a ponto do cérebro cair fora.

E como fazer isso?

Eu, particularmente tenho usado os critérios que aprendi com a ciência – mesmo com todo seu rigor e falta de imaginação.

Critérios que já relacionei em diversos artigos aqui no Hypescience.

E você meu caro leitor, minha cara leitora – que critérios utilizam?

 -o-

[Imagem: “head and tail” by Gopal Vijayaraghavan]

[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

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Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.

16 comentários

  • Heloisa Barbosa Kayser:

    Fico feliz quando alguém admite que não é possível explicar o mundo por um único viés.
    A ciência tem métodos excelentes de investigação de como as coisas funcionam, mas não pode se dar ao luxo de responder de onde viemos, para onde vamos, porque estamos aqui.
    O fanatismo está em todas as áreas, nas ciência exatas, humanas, na religião, e não faz bem a ninguém.
    Quanto a mim, opto pelo Design Inteligente e admiro a complexa estrutura do mundo pelos olhos da ciência.

    • Cesar Grossmann:

      Heloisa, a ciência tem respostas para “de onde viemos”: somos um animal que evoluiu neste planeta. A resposta para “para onde vamos” é simples: rumo à extinção, como todas as espécies neste planeta. Mesmo o Celacanto ou o Caranguejo-Ferradura um dia vão ser extintos. Quanto ao “por que estamos aqui”, a resposta é simples também: para dar origem à próxima geração. Religião, arte, esporte, ciência, tudo isto são acidentais.

      Quanto ao Design Inteligente, você até pode optar por ele, mas ele até hoje se provou falso: não há indícios de design, e não há indícios de um projetista. Mais ainda, como hipótese científica, o DI é falso. Não é ciência, é religião.

  • marcelo freitas:

    Creio que para mim, um leigo, o bom senso costuma funcionar.

  • GuiNoJudge:

    Nenhum raciocínio é infalível, mas raciocinar já avisando que ele pode estar errado, e que, à uma nova “verdade” se chegou, não me parece muito estimulante e sim mais fácil.Veja o caso do pedreiro que teve o crânio atravessado por um vergalhão, está sendo estudado lá fora e segundo os médicos que já tiveram acesso ao caso, “tudo a respeito do funcionamento do cérebro vai ter que ser revisto”, ou seja, para explicar a falta das reações esperadas, vão reescrever o que já era tido como certo.

  • neutrino:

    Esse assunto é coisa de girar a cabeça.

    Einsten, com o conhecimento atual da ciência elaborou a teoria da relatividade.

    Daqui a cem anos, talvez essa teoria esteja totalmente defasada, com o avanço da ciência.

    Ou talvez não. Vai saber.

    Quando Galileu foi condenado a fogueira, as pessoas tinham certeza que ele estava errado.

    Mas mesmo assim, com a falibilidade da ciência, formular uma teoria com base nos conhecimentos e usar um pouco
    a imaginação, não acho de todo errado.

    • Cesar Grossmann:

      Uma correção, Galileu não foi condenado à fogueira, mas à prisão domiciliar. Ele já era um velho cego, e foi condenado a não ensinar mais sua doutrina de que a Terra não era o centro do Universo.

      Quem foi condenado à fogueira foi o padre Giordano Bruno, que afirmava (com base na mística dele, e não em ciência) que todas as estrelas eram sóis e cada uma delas tinha planetas e seres humanos.

  • Aldo Costa Silveira:

    Eu terminei de ler o livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios” de Carl Sagan e percebi que muito desse texto (creio eu que não é ficcional, sendo aluno do 3º Ano do Ensino Médio, me deparo com alunos que usam alguns argumentos “que você vê que foram implantados dentro deles pelos pais diretamente ou indiretamente (muitas vezes pela religião que os pais seguem) colocaram em meus colegas de classe) é realmente um fato.
    É um dever da sociedade questionar a verdade absoluta que tanto falam.

  • Daniel Teixeira:

    Meu critério é bastante simplório, na verdade: se faz sentido, ainda que soe estranho, tem grandes chances de ser verdade; se duas verdades divergentes são igualmente plausíveis, então o desempate se dá pelas provas efetivas.

    Sou meio filosofista, evidentemente, já que a demonstração científica de uma verdade é mero detalhe, pois a teoria pode ser suficiente.

    • Cesar Grossmann:

      O problema, Daniel, é se guiar apenas pelo próprio bom-senso. Uma das tendências do nosso bom-senso é de dar mais peso para observações que confirmam nosso ponto de vista do que para as observações que demonstram-no falso. Ou seja, você acaba, sem querer, só vendo o que confirma a tua forma de ver o mundo.

  • jose Senen de Alencar:

    Ótimo o comentário Cesar, pois nos ajuda a repensar os assuntos para não nos tornarmos crédulos nem céticos.

  • Je:

    A história acima (não sei se real ou fictícia) e as conclusões de Mustafá Ali; fizeram-me lembrar de uma frase de Epíteto que muito se ouve hoje em dia sobre a mesma.
    “Deus deu ao homem dois ouvidos, mas apenas uma boca, para que ele ouça duas vezes mais do que fala.”
    (Epíteto)

  • WPantuzzo:

    Compartilho desse mesmo ponto de vista.

  • Ronaldo da Silva:

    Me considero uma pessoa religiosa, mas para perceber o mundo a minha volta também costumo usar o que aprendi com a Ciência.

    Também não acredito em verdades absolutas quando estamos falando do que está ao alcance dos olhos ou não. Afinal, acredito que o Universo não precisa da nossa observação para existir.

  • Cesar Grossmann:

    Boa história, lembra muito o primeiro capítulo do livro do Carl Sagan, “O Mundo Assombrado por Demônios”. Eu também já notei que existe muita gente que chama a ciência de religião e que os cientistas tem a mente fechada para os fatos que não se encaixam em seu modelo de realidade.

    Geralmente uma investigação prova que a crítica nasce do fato de alguma crença do indivíduo em questão não ter o aval de “cientificamente comprovada”. Em vez de analisar a crítica que a ciência tem da sua crença, o indivíduo escolhe atacar a ciência.

    Isto, a meu ver, nasce de uma ilusão, a ilusão de que o raciocínio dele é infalível, e quando ele chega à conclusão que uma afirmação é verdadeira, qualquer um que afirme o contrário é cego à realidade e está errado…

    • Mustafá Ali Kanso:

      Caríssimo colega,

      Confesso que fiquei lisonjeado perante à comparação da minha humilde vivência com a do grande Carl Sagan. Reli esse primeiro capítulo para refrescar a memória.

      De fato existem alguns pontos em comuns em ambos os episódios, respeitando as devidas proporções – é claro!

      No entanto Sagan foi muito mais feliz em seu encontro com o Sr. Buckley – no fundo, um admirador da ciência, mesmo que a confundindo com a pseudociência.

      Meu caminho é mais árido!

    • Mustafá Ali Kanso:

      Em tempo:

      Estou abordando esse tema no artigo dessa semana.

      Grato pela postagem e audiência!

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