Kit de sobrevivência para a selva da informação

Por , em 26.05.2014

A Coisa Mais Preciosa

Tive a inaudita alegria de ter o episódio que narrei no artigo “Credulidade e Ceticismo – os dois lados da mesma moeda” comparado ao primeiro capítulo do célebre livro “O Mundo Assombrado pelos Demônios” do não menos célebre Carl Sagan.

Confesso que fiquei deveras lisonjeado.

De fato existem alguns pontos em comuns em ambos os episódios, respeitando as devidas proporções – é claro!

Sagan narra no capítulo “A Coisa Mais Preciosa” seu encontro com o Sr. Buckley, o motorista que o levaria do aeroporto para uma conferência com cientistas e profissionais da televisão.

Nesse longo trajeto do aeroporto até o local da conferência o motorista bastante empolgado entabula uma conversa entusiasmada com o célebre cientista sobre extraterrestres, canalização, profecias de Nostradamus, astrologia, sudário de Turim, Atlântida, Lemúria e assim por diante.

Sagan narra que teve a delicada tarefa de contrapor o que a ciência tinha a dizer sobre cada um desses portentosos temas.

Em suas próprias palavras, reafirma no livro:

“— Eu tive de desapontá-lo todas as vezes”.

“Enquanto rodávamos pela chuva podia vê-lo tornar-se cada vez mais soturno. Eu não estava apenas negando alguma doutrina falsa, mas uma faceta preciosa de sua vida interior”.

No entanto Sagan foi muito mais feliz nesse seu encontro com o Sr. Buckley – no fundo, um admirador da ciência, como o narrado na página 19:

“O Sr. Buckley — bom papo, inteligente, curioso — não tinha ouvido virtualmente nada sobre a ciência moderna. Ele tinha um apetite natural pelas maravilhas do Universo. Queria conhecer a ciência”.

Quando reli esse capítulo tive a nítida impressão que meu caminho é muito mais árido.

Como no caso de meu vizinho de poltrona que além de confundir ciência com pseudociência e misticismo, negava a primeira com todas as suas forças.

Negava a ciência veementemente. E o que era pior – não manifestava a mínima vontade de conhecê-la.

Novum Organum

Novamente recordo Francis Bacon e seu Novum Organum; tratado que esboçou os primeiros pilares para a edificação da nossa metodologia científica, que mesmo escrito em 1620 nunca perdeu sua atualidade.

Permitam repeti-lo aqui numa tradução livre de minha autoria:

 

A compreensão humana não é livre de interesses; recebe influxos da vontade e dos afetos de tal forma que um homem acredita mais facilmente naquilo que ele gostaria que fosse verdade, ao mesmo tempo, que ele rejeita rapidamente:

  1. As coisas difíceis a seu entendimento por pura preguiça de pesquisar;
  2. As coisas sensatas por abaterem sua esperança;
  3. As coisas fundamentais da natureza por pura superstição;
  4. A clareza da experiência alheia (que muitas vezes é por ele negligenciada) devido ao seu orgulho e arrogância.

Como já afirmei outras vezes, infelizmente esse tipo de encontro não é raro. O número de pessoas que por vaidade ou arrogância nega a ciência é incrível.

Primeiro por não querer confessar sua ignorância — como se fosse uma vergonha não saber.

É preciso deixar claro que é impossível para qualquer ser humano — por mais genial que ele seja — o domínio completo de qualquer área do conhecimento.

É impossível!

Assim não existe vergonha nenhuma em não saber.

E se ilude aquele que se arroga de tal prerrogativa.

Talvez seja vergonhoso o fato de não querer saber e mesmo assim criticar.

Criticar assentado apenas no achismo, em ideias mal acabadas e repetidas ad nauseam, sem nenhum exame crítico, sem nenhum questionamento, sem nenhuma gota de critério ou bom senso.

Mais uma vez, a fonte de desorientação é a mesma, pois as informações disponíveis nos meios de comunicação não passam por nenhum filtro. Nem o do bom senso.

Muitas são cunhadas no mesmo molde da publicidade e do consumismo e servem apenas aos interesse de quem as gerou.

E evidentemente querem vender alguma coisa — de sabão em pó a ideologia.

Dessa feita no mar do entretenimento a nossa super mídia moderna nos apresenta muitas informações:

— Algumas como cortina de fumaça;

— outras como iscas e outras como anzóis.

Como diferenciar?

Como classificar?

Como depurar?

De novo Carl Sagan.

“Ciência não é apenas um depósito de conhecimentos. É uma forma de pensar”.

E para atender aos meus leitores que sempre pedem uma compilação desses critérios de avaliação e seleção das informações eu os apresento na forma de 10 conselhos úteis de como avaliar uma informação:

Ou

KIT DE SOBREVIVÊNCIA PARA SELVA DA INFORMAÇÃO

Antes de aceitarmos uma informação devemos:

1. Investigar a probidade e a isenção da fonte dessa informação e as evidências que a corroboram;

2. Consultar outras fontes que sejam tão ou mais isentas ou probas;

3. Examinar à luz da razão e do bom senso, sua lógica, viabilidade e/ou usabilidade contrapondo-as às informações colhidas em diversas fontes;

4. Tomar cuidado redobrado com tudo que subverta ou ignore as leis da natureza e/ou que apele para o maravilhoso, fantástico, inexplicável ou fabuloso – afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias;

5.   Avaliar qual o custo ou prejuízo ou danos potenciais frente aos seus benefícios presumíveis;

6. Tomar cuidado redobrado com tudo que queiramos (profunda e apaixonadamente) que seja verdade;

7. Perguntarmo-nos, se temos nos investigado e nos questionado o suficiente, a ponto de identificarmos o quanto já sabemos sobre esse nosso próprio querer e o quanto ele interfere em nosso discernimento e avaliação dessa informação.

8. Não acreditar por acreditar e não duvidar por duvidar. Além de se usar o bom senso é imprescindível usar também o senso de humanidade e abandonar a preguiça.

9. Criticar não é achincalhar. É avaliar. É emitir um parecer ou julgamento:

  • Estético, se contempla uma obra de arte;
  • Lógico, se contempla um raciocínio;
  • Intelectual, se contempla um conceito, uma teoria ou um experimento e
  • Moral, quando contempla uma conduta.

E para tal é imprescindível se aproximar do devido conhecimento que o capacita para esse julgamento.

10. Tomar muito cuidado ao emitir os pareceres críticos— nesse hiato entre o ceticismo e a credulidade se oculta invariavelmente o preconceito.

-o-

[Imagem: Night by Peasap]
[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

LEIA SOBRE O LIVRO A COR DA TEMPESTADE do autor deste artigo

À VENDA NAS LIVRARIAS CURITIBA E ARTE & LETRA

Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.

Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”

Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.

 

6 comentários

  • JB Pontes:

    Quando vi que até Einstein tinha suas próprias limitações científicas é que descobri que a própria Ciência está relacionada com quem a faz. Para quê haveriam cientistas, se toda a Verdade já fosse conhecida? Dentro deste raciocínio, vejo as grandes possibilidades ainda a serem descobertas. Acho até que que não há limites para aquilo que ainda não sabemos. Quando perguntado se ele era o homem mais sábio do mundo, porque haviam dito que ele o era, Sócrates disse que só sabia de uma única coisa:…

    • JB Pontes:

      …que nada sabia.

  • Afonso:

    Excelente artigo. Muio esclarecedor. Muito obrigado!

  • Brian Carvalho:

    Parabéns Professor Mustafá! Mais um texto totalmente excelente!

  • Cesar Grossmann:

    Perfeito, o artigo!

    Eu acho que é uma das melhores ferramentas esta do Carl Sagan para aplicar alguma crítica, o único senão é em relação à parte que trata de aplicar o bom-senso. O problema é que nem todo mundo tem o bom-senso de um Carl Sagan, ou de um professor Mustafá A. Kanso. Quando o seu bom-senso é colorido por superstições ou desconhecimento, ou o que é pior, conhecimento presumido, quando o sujeito acha que sabe, o que fazer?

    Ignorância sobre a própria burrice pode explicar muitos dos problemas da sociedade

  • Diego Willrich:

    Muito bem, amigo Mustafá! Excelente texto!

    E foi curiosa a sincronicidade, pois ontem mesmo li um texto muito semelhante (não que um seja plágio do outro, apenas digo que reforçam o mesmo pensamento e comportamento científico frente a vida) que pode ser encontrado aqui: http://universoracionalista.org/o-guia-de-bolso-para-prevencao-de-besteiras/

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