Memória fotográfica: mito ou realidade?

Por , em 23.02.2014

Tem gente por aí que jura que consegue se lembrar de quase todos os detalhes do que eles fizeram em um dia aleatório, há dez anos. Mas será que é possível ter uma memória fotográfica real, seja desenvolvida pela natureza ou por treinamento?

O estudo de um caso – ou talvez nenhum

A lista de pessoas que afirmam ter memória fotográfica é longa, entretanto quando você pesquisa pelos estudos científicos documentados, esta lista diminui consideravelmente, resultando em apenas um caso: um único artigo publicado em 1970 na revista “Nature”.

Na “Nature”, o pesquisador de visão de Harvard Charles Stromeyer detalhou o caso de uma mulher, Elizabeth, cuja memória era tão excepcional que ela podia ver um estereograma composto por 10 mil pontos de imagem com um olho em um dia, ver uma segunda imagem pontilhada com o outro olho no dia seguinte, e, em seguida, sobrepor essas duas imagens de pontos em sua memória com tanta precisão que ela conseguia ver a imagem 3D completa que a composição iria criar. Contudo, outros pesquisadores começaram a olhar o caso com ceticismo quando ela não teve o mesmo resultado com outros cientistas, só com Stromeyer – e tornaram-se ainda mais céticos quando, mais tarde, Elizabeth e Stromeyer acabaram se casando.

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A literatura científica está repleta de outros exemplos excepcionais. Porém, o tipo de lembrança total e instantânea – unindo o visual, áudio, espacial e verbal – que define uma memória fotográfica é visivelmente ausente. Então, se memórias fotográficas da vida real (não obstante o estranho caso de Elizabeth) não existem, o que acontece com essas pessoas que parecem ter memórias muito, muito boas?

Neste caso um pouco menos “excepcional”, o terreno científico fica muito mais sólido.

Memória fotográfica é “Como um filme que nunca para”

Em 2000, Jill Price contatou cientistas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, para descrever a notável e incomum memória com a qual ela aparentemente tinha nascido. “A maioria acha que é um dom, mas eu chamo isto de um fardo”, desabafou em seu e-mail. “Eu vejo toda a minha vida na minha cabeça todos os dias e isso me deixa louca!”.

Em um primeiro momento, os pesquisadores estavam céticos, mas, depois de mais de cinco anos de testes, eles gradualmente se convenceram de que a mulher que chama a si mesma de “calendário humano” era real. Eles descreveram sua memória no artigo publicado em 2006 na revista “Neurocase” como “incontrolável e automática”. Porém, a habilidade também era limitada.

Jill de fato parecia ter algo muito próximo da memória perfeita, chegando a deixar os pesquisadores deslumbrados discorrendo uma lista completa de seus últimos 20 anos de Páscoas em 10 minutos. Mas essas lembranças eram totalmente focadas em si mesma e nos momentos do dia-a-dia que tinham feito parte da sua vida. Em contraste com outros que diziam ter memórias superiores, ela não tentava desenvolver sua memória. Na verdade, parecia achar a habilidade bastante desagradável.

“É como um filme que nunca pára. É como uma tela dividida”, descreveu a norte-americana. “Eu converso com alguém e vejo outra coisa. Estamos aqui sentados conversando, eu estou falando com você e, na minha cabeça, estou pensando em algo que me aconteceu em dezembro de 1982, 17 dezembro de 1982, era uma sexta-feira, comecei a trabalhar na Gs [uma loja]. É uma questão de datas. Eu só sei essas coisas sobre datas”, divaga, confusa.

Na maioria dos testes de memória – por exemplo, memorizar uma longa sequência de dígitos ou guardar informações lidas em um livro – ela não se saiu melhor que a média da população. Também observou que suas habilidades de memória não foram grande ajuda para ela na escola, nem mesmo na matéria de História. Seu conhecimento de datas é limitado apenas aos dias que ela mesma experimentou e, mesmo assim, não é infalível. Os pesquisadores apontam que Jill, algumas vezes, não se lembrou corretamente de uma data ou de uma história contada previamente.

Definir a condição dela como memória fotográfica, portanto, não parece muito preciso. Ao invés disso, pesquisadores cunharam o termo “síndrome hipertimésica” para descrever Jill e um punhado de outras pessoas cujas memórias excepcionais parecem ser puramente confinadas às suas próprias experiências.

Mas, se a memória fotográfica não é um dom que pode ser concedido pela natureza, então talvez seja um objetivo que pode ser alcançado por outros métodos, como tentaram alguns memorizadores famosos.

Você pode desenvolver uma supermemória?

O chinês Chao Lu atualmente detém o recorde mundial de recitar mais casas decimais do Pi de cabeça. Em 2005, Lu – que estava estudando Química na China – recitou o Pi até a 67.890ª casa. Ele levou mais de 24 horas falando continuamente. Com certeza isso parece, à primeira impressão, um ato extraordinário de memória, o que de fato foi, mas também tinha uma boa dose de criatividade.

Para chegar ao ponto em que ele foi capaz de abocanhar um recorde mundial, Lu passou mais de 4 anos de memorizando os dígitos que compõem o Pi. Entretanto, ele não estava memorizando os números – em vez disso, estava decorando uma história. Lu explicou que ele havia separado pares de dígitos e relacionado-os com imagens correspondentes, que, em seguida, foram utilizadas para compor uma série de histórias. Em essência, ele passou esses quatro anos compondo e memorizando um romance épico, que depois recitou para os espectadores de forma muito semelhante a que um contador de histórias recitaria seu conto favorito.

Além do mais, Lu só foi até pouco mais de 3/4 do seu conto no dia em que ele quebrou o recorde. Ele poderia, na verdade, chegar ainda mais longe. “Eu sei 100 mil dígitos do Pi e ia recitar 91.300 de deles. Mas eu cometi um erro no 67.891º dígito. Era “0”, mas eu disse “5” quando estava recitando”, contou, à época.

Dentro do palácio da mente

Uma vez por ano, um grupo cuidadosamente selecionado entre algumas das memórias mais excepcionais do mundo pode ser encontrado reunido no Campeonato Mundial de Memória. Lá, eles competem tentando superar uns aos outros em truques como recordar rapidamente a ordem das cartas de um baralho, memorizar sequências de números binários e ligar nomes a pessoas.

Em 2002, a neurocientista Eleanor Maguire decidiu fazer uma série de exames de ressonância magnética nos campeões, para um estudo que ela ia publicar na revista “Nature”, a fim de ver quais diferenças ela poderia encontrar em seus cérebros que explicariam a sua notável memória. E não encontrou nada.

Os campeões de memória não mostraram diferenças na estrutura cerebral, não tinham níveis incomuns de atividade cognitiva, nem habilidades excepcionais em áreas verbais ou não verbais. A única diferença que Maguire foi capaz de encontrar foi que, curiosamente, quando os campeões realizavam uma façanha com a memória, havia atividade cerebral em áreas que geralmente eram associadas com lembrar de locais físicos ou recordar direções.

Em entrevistas com os campeões, quase todos disseram a Maguire que estavam usando uma técnica de memória popular na Grécia Antiga: “o método de loci”, que você pode conhecer como a técnica do palácio da mente.

“É baseada no deslocamento”, explica Maguire. “Eles imaginam a si mesmos descendo uma rua que eles conhecem bem, colocando itens em certas posições ao longo da rua e, em seguida, repassam mentalmente sua rota para encontrar estes itens”.

Uma solução farmacêutica?

Parece que – através de uma grande quantidade de trabalho e treinamento mental – é possível capacitar o seu cérebro para se tornar muito bom em memorizar. Mas e se houvesse uma maneira de ignorar as horas de prática, os truques e os anos de treinamento? E se o problema de melhorar a sua memória fosse tão simples como tomar uma pílula? Há vários pesquisadores trabalhando nisso.

Em um estudo recente publicado na revista “Nature Neuroscience”, estudiosos da Universidade Johns Hopkins (EUA) descobriram que uma pílula de cafeína pode causar um impulso temporário no desempenho da memória ao longo de um período de 24 horas. Infelizmente, eles também descobriram que tanto o consumo regular de cafeína ou tomar mais do que um pequeno copo de café rapidamente anulava todos os benefícios.

No mundo da pesquisa de memória, porém, o objetivo procurado é muito maior do que um reforço de 24 horas. A meta real é encontrar uma maneira de aumentar a nossa capacidade de recordar a níveis superiores e a longo prazo – e alguns pesquisadores têm feito exatamente isso com camundongos.

Em 2009, uma pesquisa publicada na revista “Science” mostrou que camundongos podiam ter uma memória visual quase perfeita por um período de dois meses aumentando a produção de uma proteína encontrada em seu córtex visual. Uma pesquisa posterior publicada pela Escola de Medicina de Baylor (EUA) na revista “Cell” descobriu que, ao suprimir níveis de PKR, uma molécula envolvida na detecção de vírus, os pesquisadores também poderiam aumentar a memória espacial de camundongos para níveis semelhantes.

Em ambos os casos, os pesquisadores achavam que as pesquisas poderiam eventualmente levar a resultados semelhantes em seres humanos. Contudo, embora os estudos possam ser motivo suficiente para os ratos jogarem fora suas agendas e post-its acumulados, não existe tal pílula para ajudar os seres humanos distraídos – ainda.

O primata errado?

Então, a existência de uma memória fotográfica real é apenas um mito? Para os seres humanos, parece ser – mas isso não significa que nenhum outro animal a tenha.

Um estudo da Universidade de Kyoto (Japão) colocou seres humanos, chimpanzés adultos e chimpanzés jovens uns contra os outros em um teste para ver quem poderia lembrar melhor a localização de uma sequência de números mostrada em uma tela sensível ao toque.

Chimpanzés adultos e humanos realizaram a tarefa de forma bem parecida, entretanto os resultados dos jovens chimpanzés deixou todos os mais velhos comendo poeira. Além disso, os pesquisadores notaram que os jovens chimpanzés estavam, na verdade, mostrando tempos de resposta mais rápidos do que a capacidade de seus olhos fazerem a varredura da tela. Isso levou os cientistas a acreditar que alguns jovens chimpanzés possam possuir memórias fotográficas.

No entanto, não são apenas os chimpanzés que têm o potencial de possuir o que poderia ser chamado de memória fotográfica. A humilde mosca da fruta também tem sido alvo de pesquisadores como uma potencial possuidora de memória fotográfica, mas somente se ela for mutante. Um estudo com estes insetos que tiveram seu gene CREB fortificado, publicado na “Current Biology”, sugere que elas ganharam, ao longo de suas vidas breves, uma forma de memória fotográfica. Acontece que o gene CREB é um dos que os humanos compartilham com as moscas da fruta, mas o potencial para um aperfeiçoamento semelhante em seres humanos ainda não foi estudado. [io9]

3 comentários

  • Dalvan Bevilaqua:

    entao pelo que vi na conclusão, não é possivel adquirir. pena.

  • Gabriel Cardoso:

    Uma matéria extensa mas que vale muito a pena ler, referencia a grandes nomes como a rev. Science e Nature. Mudou a minha concepção sobre a existência da memoria fotográfica.

    • Anderson Thiago:

      Alguns savants têm sim memória fotográfica e grandes habilidades diversas, como a pintura. É algo impressionante.

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