Uma Carta para Guinevere [Conto inédito especial para o HypeScience]


Este é o primeiro conto que o renomado Mustafá Ali Kanso publica na internet. Leia também o conto “ÄUSLANDER” do mesmo autor na antologia FUTURO PRESENTE, um novo lançamento da Editora Record organizado por Nelson Oliveira, onde Mustafá e diversos autores de renome como os consagrados André Carneiro, Andrea Del Fuego e Roberto Causo o convidam a uma deliciosa jornada pela imaginação.

O HypeScience sorteará um exemplar dessa antologia FUTURO PRESENTE, autografado pelos escritores Mustafá e André Carneiro, para ser sorteado entre os comentaristas deste conto. Ao final desse artigo faça o seu comentário inteligente e concorra.

ATUALIZAÇÃO: A leitora Maria Silva (comentário 38) ganhou o livro através de sorteio realizado no site Random.ORG. Parabéns, Maria!

UMA CARTA PARA GUINEVERE

Nas primeiras vezes que liguei me disseram que você já tinha saído. Depois, que você ainda não tinha voltado. Os meios de comunicação evoluem tanto, apenas as mentiras permanecem.

Fiquei no intercomunicador até o último minuto. Queria me despedir e, acima de tudo, precisava ouvir sua voz.

O lançador está partindo agora, com seus engenhos explosivos, ele nos alçará em breve numa órbita confortável. Somos cinco a bordo, empertigados em nossos trajes branco pérola. Dez braços de um polvo humano adestrado, cumprindo tarefas decoradas, quase automáticas.

Nesse momento somos apenas luzes piscando em um painel de controle, cuidadosamente alinhavados numa lista de procedimentos.

Existe essa estática embaralhando as ondas e uma conspiração entre o momento e a distância, algo que me impede de ser mais incisivo, de ser mais honesto. Assim estou deixando gravado a inutilidade dessas palavras que alguma máquina ainda irá decodificar em bits, transformar numa energia vibrante, irradiada para Terra. Depois de interconectada não sei por quantas torres de repetição, esses pulsos etéreos serão materializados em letras gotejadas em um papel. Um correio especial levará uma anacrônica carta com o tibre da agência espacial. Espero que ao lê-la consiga por fim entender o que essa máquina não soube traduzir.

Depois de sacudidos por quase vinte minutos, chegamos num único fôlego a essa visão priviligiada da Terra.

O arco azul que se estende ao derredor, feito um ícone de magnitude e beleza, continua o mesmo. Tão majestoso e isolado que não se percebe a real dimensão de todos os pequenos dramas que acolhe.

É irônico, com tanto espaço lá fora, nos espremermos em uma latinha prateada, carregando nas costas tudo o que nos mantém vivos.

É claustrofóbico pensar o quanto nos resta de oxigênio, ou de água, ou de alimento, ou mesmo de sonhos. E, depois de todo o exaustivo treinamento, é terrível indagar sobre o quanto resta de cada um de nós. Talvez sejamos menos que uma promessa. De alguma forma não explicitada, apenas cobaias bem treinadas correndo dentro de um gigantesco labirinto.

Posso ouvi-la dizendo, como já me disse tantas vezes:

— Profissão ingrata, essa sua!

Acho que você sempre teve razão. Que diabos de ofício eu tenho?

Sou o comandante de uma guilda de sonhadores. Herdeiro de uma pretensão delirante. Essa que nos constrange em artefatos dantescos e nos expõe à morte todos os dias, apenas para tentar conquistar um espaço que nunca será nosso.

Nossa cápsula deu mais uma volta na Terra. Assisti a Austrália singrando para o amanhecer enquanto a imensidão da Eurásia acendia suas cidades.

Pude ver.

Já é noite em Avalon e os mistérios seculares não conseguem competir com o nosso. Não da mesma maneira.

Mesmo perante a amplidão que nos cerca não me coube nesse espaço a grande proeza de não pensar em você.

Não consigo entender o porquê de nosso descompasso, dessa coleção de frases soltas, que nos enrodilhou em palavras inpensadas. Das amarras que se quebraram e eu como um balão perdido das mãos de uma criança descuidada, segui esse insólito caminho pelo qual flutuou toda minha vida, conduzida por um vento estranho.

Quando recordo de você, de nós, de todas as coisas que eu poderia ter dito, ou calado, um sentimento de fragilidade me invade, como se o traje que me protege fosse forjado em vidro e uma rachadura no peito se ampliasse expondo ao vácuo o que carrego de mais sagrado.

Por quê? É isso que me pergunto todas as vezes que passo e repasso nossa história. Mesmo sabendo que não existem culpados nem inocentes. Apenas uma comédia triste. Um filme mudo sem acompanhamento, sem ninguém para assistir, a não ser os infelizes protagonistas.

Quem poderia imitar essa coleção de gestos tragicômicos? Meus desastrados passos que me levaram tão distante de você enquanto seu olhar perdido tentava inutilmente esconder o mais simples desespero.

Adiantaria dizer que me arrependo de todas as minhas partidas? Você saberia que não.

Amo a paisagem dessa clarabóia. Amo as coisas que o espaço revela e todas as outras que ele oculta. Fiz desse ofício minha vida, mesmo custando a família, os amigos. Mesmo custando você.

Porém, odeio voltar para um apartamento vazio. Se ao menos tivessémos filhos, talvez eu conseguisse vizualizar um ensaio de família, coisas e ruídos preenchendo esse tempo que se esvai.

Mas o momento passou e tomamos outras decisões.

Sou surpreendido agora pela definitiva verdade que sem você já não tenho mais nenhum porto para onde voltar.

Queria que pudesse compreender a luta que me trouxe até aqui. Toda uma juventude que se esvaiu, tragada por incansáveis horas de treinamento.

Queria que pudesse sentir essa emoção de quando navego sobre o planeta, como agora, olhando para o norte e o sul ao mesmo tempo, entendendo, que não importa quão grande sejam nossos feitos que sempre seremos pequenos.

É inconcebível essa expectativa quando vejo o instante que se aproxima. O exato momento em que cortaremos nosso cordão umbilical e nos projetaremos para muito longe de tudo. Uma inacreditável sucessão de acontecimentos fantásticos que chamamos simplesmente de missão.

Não importa que já não exista prestígio e que esse mergulhar no espaço já seja rotina. Que a multidão não me reconheça quando caminho pelas ruas; eu que sujei minhas botas com as areias de Marte; eu que já carrego na alma a poeria das estrelas. O que importa é que eu já estive lá. Pude ver a Terra como um simples ponto luminoso ou como uma semi-esfera azulada e mesmo assim nunca me senti tão próximo, tão conectado. Nunca me senti tão humano.

Não é fácil abrir mão do que nos define. Fazer ruir os pilares que nos sustentam. Sei que minhas aspirações não são pequenas. Mesmo com esse meu jeito impróprio de existir, olhando para vida como se fosse um brinquedo novo.

Queria que entendesse que logo serei transformado em energia; e tudo aquilo que fui será destruído. A Física nos ensina que não podem existir dois átomos iguais no universo. Assim, meu corpo será transformado em ondas. As máquinas guardarão minha receita e serei apenas vibração viajando dentro de um raio luminoso. Isso mesmo! Viajarei dentro de um raio de luz. Mesmo com todas essas sombras que ainda carrego!

Um dia você me chamou de Lancelot: um cavaleiro honrado em sua armadura brilhante buscando o graal inalcançável da ciência.

Logo eu que sempre fui um plebeu inebriado por essa quixotesca demanda, a ponto de não ver mais que minha imagem no espelho.

Que fronteiras achararemos? Não sei.

No entanto, a relatividade explica que quando eu voltar, séculos terão se passado. Serei para a história apenas uma tênue lembrança de um instante longínquo.

Quisera que o tempo fosse outro e que as decisões não fossem tão definitivas.

O que importa agora é que repetiremos em nós mesmos a angústia de um mito arturiano.

Lancelot migra para longe e se perde na história, perseguindo através das eras seu objetivo inatingível. Ele persiste pela eternidade, não por que acredita em sua missão, mas por que – na verdade – quer evitar as chamas de um amor proibido.

Restará para Guinevere o conforto de saber que foi amada tão intensamente que por séculos, alguém continuará – errante em meio as estrelas – chamando todas as noites por seu nome.

Comente e concorra a uma cópia do livro Futuro Presente autografada por dois de seus autores: André Carneiro e Mustafá Ali Kanso. Você encontra o livro à venda nas Americanas, Galileu e UOL.

futuro presente
Capa do livro Futuro Presente