A culpa é do professor!
A CULPA É DO PROFESSOR
Eu tenho percebido uma tendência de certos consultores em educação de ao apontar as falhas no processo de ensino brasileiro ter encontrando na figura do professor (e/ou da escola como um todo) o seu bode expiatório preferido.
Só para ilustrar, existe um programa de rádio matutino onde uma dessas consultoras oferece conselhos ao público sobre a educação dos filhos e que usa de forma frequente essa saída fácil “a culpa é do professor” e/ou “a culpa é da escola”.
Vamos aos exemplos:
Um aluno do fundamental foi suspenso devido ao seu hábito frequente de morder os coleguinhas.
Os pais foram chamados e uma providência foi solicitada.
A especialista vaticinou: a culpa é da escola, afinal a ocorrência se deu na escola. A escola que resolva.
Simples assim.
Espera aí!
É a escola que deve ensinar uma criança de que ela não deve morder seus colegas ou esse é o papel da família?
E as crianças que foram mordidas por esse aluno, não possuem nenhum direito?
Por exemplo, o de aprender a resolver sistemas de equações de primeiro grau sem serem mordidas por um colega.
Nada disso é sequer mencionado.
É dever da escola resolver e pronto.
Afinal os pais estão pagando e querem resultados.
E as outras crianças que não mordem os colegas, como aprenderam essa conduta?
Pela televisão?
Resumindo o questionamento principal:
Será que são os pais que devem educar seus filhos para que eles estejam aptos a viver em sociedade?
Sem morder ninguém, por exemplo.
Ou esse é o papel da escola?
Mas vamos adiante:
Uma mãe reclama que a professora passa muita tarefa de casa para seu filho.
Resposta: A culpa é da professora, que não sabe medir a carga de atividades semanais.
Mas, espera aí!
Outros pais foram consultados ou convidados a emitir sua opinião?
Qual o rendimento dessa criança?
Ela recebe alguma motivação da família para estudar?
Qual o currículo dessa professora?
Quais são essas malfadadas lições de casa, qual sua abrangência, qual sua proposta pedagógica, quais habilidades e competências que ela pretende desenvolver?
Nada disso é perguntado.
Apenas se vaticina que o professor é culpado. Seu crime: passou muita tarefa.
Substitui-se o professor ou troca-se de escola. Problema resolvido.
Próximo caso!
Uma mãe reclama que a professorinha do fundamental exige que o seu filho faça trabalhos escolares usando latinhas de refrigerante, garrafas PETS tiradas do lixo, etc.
Que horror! E os germes? E a trabalheira que essa mãe tem para separar as tais latinhas e garrafas vazias?
Será que a professorinha não tem ideia de como essa mãe é atarefada?
Resposta: A culpa é da professorinha e da escola por fazer propostas sem nenhuma noção de higiene ou adequação.
Destaco aqui que o termo “professorinha” é usado muitas vezes em tom depreciativo, insinuando que todas são professoras muito menininhas e que não sabem nada da vida.
Será?
A questão ecológica trabalhada pela professora não tem valor?
E o desenvolvimento da criatividade da criança? Alguém quis saber a respeito?
Em quais pressupostos a professora fundamentou sua prática?
Alguém leu o currículo dessa professora? Alguém tem o direito de usar diminutivos nesse contexto?
Nada disso é argumentado.
Apenas o veredicto: a professora e a escola são os culpados!
Próximo caso!
Não quero aqui crucificar essa ou outros pretensos consultores de educação, pessoas que nunca deram uma aula na vida e que perambulam sob os holofotes da mídia vendendo sua opinião, afinal esse país é livre e todos possuem o direito de ter, dar e/ou de vender sua opinião, mesmo que disparatadas.
O que realmente me surpreende é a rapidez com a opinião pública acata tais disparates sem ao menos examiná-los sob a ótica do bom senso.
Também não quero dizer aqui que o professor sempre tem razão, num contraponto corporativista ao veredicto vicioso desses leigos “especialistas” de plantão.
Existem professores e professores.
É importante frisar!
Cabendo aqui a importante reflexão sobre o problema de indução que já abordei aqui por diversas vezes:
Uma classe não pode ser julgada, condenada e aviltada fundamentando-se na má conduta de alguns.
Mas, o que realmente chama a minha atenção é o completo desconhecimento da sociedade como um todo, e aí se inclui a maioria dos pais e até desses consultores de ocasião, sobre qual é o real papel da escola.
A escola e o professor, pelo menos no Brasil, atuam ainda no mundo da instrução.
Se isso é certo ou errado. Se isso é o ideal ou não – a conversa é outra.
É preciso deixar isso claro. Vou repetir:
A escola e o professor atuam no mundo da instrução.
E o que significa isso?
Por exemplo:
É instrucional o ato de ensinar a ler e escrever;
É instrucional o ato de ensinar conceitos científicos;
É instrucional o ato de ensinar a usar conceitos matemáticos para resolver problemas de outras ciências;
Etc.
A formação individual é algo mais abrangente e exige uma dedicação e um atendimento também individual, que a escola, enquanto instituição, e o professor, enquanto profissional, não foram instrumentalizados para atender.
Pelo menos no Brasil.
Basta avaliar nosso modelo de ensino de turmas apinhadas, professores mal pagos e desvalorizados.
Governos e governantes são os detentores do poder capaz de inferir nessas questões, ou não?
Ainda:
Os principais agentes educadores da atualidade são os pais ou os responsáveis legais.
Em síntese a família (ou pelo menos teria que ser).
Não há como exigir da escola e do professor que cumpram esse papel.
A educação é algo muito mais amplo que a instrução.
Envolve muito mais que a simples aplicação da razão – que é a principal ferramenta do mundo da instrução.
A educação envolve relações afetivas e demanda muita sensibilidade e subjetividade, que só é conquistada pelo acompanhamento individual, diário e constante num fenômeno social muito complexo denominado convivência humana.
É através do exemplo de conduta, na convivência humana, que se ministram as melhores lições para a formação do indivíduo.
Um professor encontra seus alunos algumas horas por dia — e na melhor das hipóteses — há apenas um professor para cada 35, 40 alunos em média.
Um professor para atender dezenas de alunos! Esse é o modelo do ensino no Brasil!
De que forma esse professor vai trabalhar o indivíduo se sua prática por definição é massificada?
Existem alguns professores que, mesmo nessas condições adversas, conseguem cumprir em parte com esse papel e são mais afetivos e efetivos que muitos pais (evidentemente devido à sua sensibilidade, experiência, talento, etc).
Mas não é essa a sua obrigação.
O professor não é o pai nem o responsável legal por seu aluno.
Ele não tem autoridade legal para estabelecer limites ou definir regras sobre a educação desse aluno.
Os alunos são menores incapazes e são os seus pais ou responsáveis que por lei devem responder pelas ações desses jovens.
Qualquer interferência de um professor, que não se restrinja à instrução, pode culminar em processo cível.
Será que ninguém se lembra disso?
E mesmo assim, se um professor de matemática tiver que ensinar aos seus alunos como se portar com educação e sensibilidade, e tiver que gastar horas, semanas, meses (e quem sabe anos), até que seus alunos adquiram tal educação e tal sensibilidade a ponto de não morder um coleguinha durante as aulas, quem será que vai ensinar a essas crianças como resolver um sistema de equações?
Ou existe algum método que por meio das técnicas matemáticas para resolver sistema de equações também se ensine a respeitar o próximo ou – usando o nosso exemplo anterior – a não morder seus colegas?
Repito:
A nossa escola vive ainda o mundo da instrução. Não podemos nos iludir.
A formação individual ainda é uma tarefa da família e que pode encontrar na escola sua grande aliada.
Eis o termo – aliada.
Mas é preciso que os pais ou responsáveis legais tenham consciência disso e tratem o professor e a escola assim:
— Como aliados.
E não como bode expiatório ou um inimigo a ser intimado, combatido e subjugado.
-o-
[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]
LEIA SOBRE O LIVRO A COR DA TEMPESTADE do autor deste artigo
À VENDA NAS LIVRARIAS CURITIBA E ARTE & LETRA
Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.
Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”
Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.
16 comentários
Concordo plenamente com o autor, apesar de não ser professor. Como estudante, entendo perfeitamente o que um professor passa na escola. A responsabilidade da família, que vem perdendo o valor nas sociedades modernas, está sendo empurrada para as escolas.
Achei perfeito a colocação de que a escola é uma grande aliada da família no processo de formação do indivíduo. Parabéns pelo artigo!
A escola virou depósito de crianças. O que temos são pais criminosos, que abandonam intelectualmente seus filhos (vide ECA), deixando para a escola o papel que seria deles. Quando são convocados à escola, comportam-se pior que seus filhos, interessando-se apenas por resultados, sem interesse no processo, no desenvolvimento; uma total irresponsabilidade. Não são todos, mas a maioria.
Temos profs mal preparados? claro! como em qualquer outro setor, mas há MUITOS bons. Fácil é falar de um…
Não entendi o que tem a ver o ECA com o “abandono intelectual” que você se refere.
Respeito muito sua opinião Professor, mas também falando como um (ao menos por formação, pois nunca dei aulas em escola), vejo que a escola não tem “apenas” a função de instruir.
Como um ambiente de convivência das crianças, muitas vezes esse local acaba por ser um segundo lar, e deixar os alunos a mingua, esperando que apenas a família eduque suas crianças como cidadãos corretos e respeitosos, é como se esquivar de uma responsabilidade que é inerente a Educação completa.
Continuando…
…Continuação.
Cito como exemplo o que ocorre no filme O Clube do Imperador, imprescindível na formação de qualquer professor, que gera justamente essa discussão de qual é a missão do professor: mediar cultura ou EDUCAR?
Caro leitor,
Releia o texto e reflita sobre esses parágrafos:
“A formação individual é algo mais abrangente e exige uma dedicação e um atendimento também individual, que a escola, enquanto instituição, e o professor, enquanto profissional, não foram instrumentalizados para atender.
Pelo menos no Brasil.”
(…)
“A formação individual ainda é uma tarefa da família e que pode encontrar na escola sua grande aliada.
Eis o termo – aliada.”
Respondi?
Grato pela audiência
Isso mesmo, professor Mustafá!
Necessitamos de famílias que realmente se aliem à Educação, verdadeiramente comprometidas com o desenvolvimento de seus filhos.
Muitos pais não conseguem mais impor LIMITES aos seus filhos. Então acreditam que a escola a polícia ou a justiça resolverão a rebeldia dos filhos.
Sou pesquisador em Educação, na UFPR, e estudo a questão da Maioridade Penal e aos aspectos que a envolvem.
Será um prazer conversarmos mais!
Abraços,
Prof. Adolfo Hickman
A culpa é do professor sim, mas também da sociedade e dos país. Quando eu estudava, lembro muito bem que os professores “cascas-grossas” educavam muito bem os alunos e progrediam com a aula, enquanto os mais liberais, os alunos só zuavam e não aprendiam coisa alguma. Professor com posicionamento = aulas bem ensinados. Sim, em partes, a culpa é do professor.
Errado. Minha mãe é professora em uma escola pública na periferia, zona oeste. Já a vi chegar em casa chorando pelo desrespeito, ameaças e sobretudo, pelos pais mais preocupados em beber e fumar do que com a educação dos filhos. Não meu amigo, a culpa não é do professor. Meu senso crítico veio da escola, mas minha educação e respeito ao próximo vieram de casa.
Infelizmente os pais de hoje não aceitam esse tipo de comportamento, fazendo estardalhaços por qualquer motivo torpe.
Belo texto!
Tentando completá-lo, a maneira de instruir os alunos é capenga, pois legalmente o professor não pode reprimir os alunos. Meus filhos, por diversas vezes, contavam casos de alunos xingarem os professores. Houve mesmo o caso de um colega que praticamente não ia às aulas e ia muito mal nas provas. Assim que repetia de ano o pai entrava com um processo e o aluno passava de ano. Resultado: era praticamente analfabeto!
Eu não sou professor, mas acho que tem alguma coisa errada quando um professor tem que recorrer à violência para se impor ou para conseguir a atenção dos alunos. Acho que parte da desmotivação dos alunos nas aulas vem de um professor que está também desmotivado e não sabe encantar os alunos.
Por outro lado, a noção de respeito ao próximo é coisa que tem que vir de casa. Se você não aprende isto em casa, o que teus pais estão te ensinando?
A propósito, sempre que converso com os professores dos meus filhos, só ouço elogios – nunca, professor algum, me procurou para dizer que foi desrespeitado pelos meus filhos, ou que eles estimularam bagunça na sala de aula.
Agora, o que eu já ouvi dos meus filhos sobre os professores e colegas….
Como “reprimir” não quis dizer violência. Atualmente mandar conversar com o diretor ou mandar bilhetes para os pais só serve de motivo de chacota.
Excelente reflexão. Parabéns pelo texto!
Muitíssimo bem colocado. Vem em boa hora frente àquela série do Fantástico, que parece querer demonstrar que a escola serve pra tudo menos para aprender, onde eles exibem uma série de exemplos onde crianças e jovens vão à escola para cantar e “gostar” de estar lá, mas ninguém mediu os resultados, ninguém mostrou alunos aprendendo de fato. Ainda não vivemos no mito onde cada um pode escolher o que aprender na formação básica, e ignorar o resto. Você foi muito bondoso nos exemplos. Tem coisa…