Ícone do site HypeScience

A síndrome do aprendiz de feiticeiro

O POEMA DE GOETHE

Volta e meia me recordo desse poema de Goethe, escrito em 1797.

O poema se inicia com um velho feiticeiro que tendo que se ausentar de sua oficina de magia a deixa sob os cuidados de seu aprendiz.

O aprendiz na ausência de seu mestre se arroga como um grande feiticeiro.

Mesmo sem dominar a arte mágica encanta um esfregão para que este ganhe vida e então cumpra com suas tarefas.

Sem nada para fazer e exaurido por suas atividades, o aprendiz resolve tirar um cochilo.

Durante esse sono ele sonha com toda a sua grandeza. Ele é um grande mago. Um poderoso feiticeiro.

Sonha que é capaz de dominar com sua arte todas as forças da natureza.

Consegue comandar os ventos e os mares bem como traçar um novo rumo para as estrelas.

Acorda com a oficina completamente encharcada.

Afinal o esfregão é um simples autômato e sem nenhuma crítica realiza a mesma tarefa repetidas vezes, sem cessar.

É nesse instante que o aprendiz se dá conta de que não é capaz de parar o esfregão. Tardiamente percebe que seu domínio sobre a feitiçaria é incipiente e arrepende-se amargamente de sua audácia.

Desesperado pelas consequências de suas ações e consciente que seu mestre não tardaria a voltar resolve usar da força bruta.

Sem pensar, usa do machado para transformar o esfregão em um punhado de cavacos.

Para sua surpresa, cada fragmento regera-se num novo esfregão, que logo retoma suas funções. Agora, não apenas um, mas centenas desses autômatos trabalham incansavelmente e acabam por transformar a oficina num verdadeiro caos.

Quando tudo parece estar perdido, o velho feiticeiro retorna e rapidamente quebra o feitiço e então salva a oficina.

O poema termina com a advertência do mestre para seu discípulo:

“Forças tão poderosas só devem ser invocadas pelos mestres que as dominam”.

MICKEY MOUSE

Aliás, Walt Disney, na célebre animação “Fantasia” nos brinda com uma versão divertida dessa história, onde Mickey Mouse protagoniza a parábola como o próprio Aprendiz de Feiticeiro e sob a regência do célebre maestro inglês Leopold Stokowski a Orquestra Sinfônica da Filadélfia dá vida ao poema sinfônico homônimo de Paul Dunkas.

Vale a pena rever e também pensar sobre o tema.

SIMBOLOGIAS E ADVERTÊNCIAS

Mesmo escrito em 1797 o poema de Goethe nunca perdeu sua atualidade. Seja na medida que nos adverte sobre a impaciência e a vaidade do aprendiz — que são em verdade seus maiores inimigos.

Seja pelo impulso da prepotência tão comum ao ser humano que o leva a realizar gestos impensados e com consequências não menos que desastrosas.

Basta que a posse de um pouco de conhecimento lhe confira a sensação ilusória de domínio que o aprendiz se arroga detentor de todo o poder e evidentemente passa a ser vítima de sua arrogância e de sua presunção.

É fácil intuir que tal parábola se aplica tanto a indivíduos quanto a nações.

Particularmente quero me referir à aplicação desse simbolismo em meu campo específico de ação que é a ciência e a tecnologia — mas facilmente poderia ser entendido, em seu tom moral, tanto para a filosofia quanto para as práticas de muitas religiões.

Mas vamos à ciência:

Sempre que o ser humano transcende as fronteiras de alguma pesquisa, notadamente se percebe essa síndrome de “aprendiz de feiticeiro”.

Arrogância e audácia substituem a humildade e prudência.

Teimosia e obstinação substituem a flexibilidade e o bom senso.

Não precisamos ir longe nessa metáfora para intuir as consequências. Basta recordar que as cinzas de Hiroshima e Nagasaki ainda caem sobre nós.

Indo da atomística para a gestão ambiental, observamos o péssimo trabalho que nós aprendizes de feiticeiros estamos fazendo.

De um lado, temos políticos e cientistas tão comprometidos com o modelo de consumo vigente que não se advertem de sua falta de compromisso com o futuro.

Do outro lado temos uma população anônima tão concentrada em seus pequenos dramas diários, que ao se alienar de seu papel histórico simplesmente olha para o outro lado, ora negando a ciência e a cidadania ora embriagando-se de distrações e amenidades, como se a culpa de todos os males fosse o continente e não o conteúdo.

Quando nos acercamos do campo da genética gelamos até os ossos.

Eu particularmente sinto calafrios quando leio alguns artigos científicos defendendo o patenteamento de gens, transgenia humana e eugenia – só para citar três exemplos.

Por isso reforço nesse artigo minha tese de que a ciência é muito importante para ficar na mão apenas de cientistas e políticos.

É preciso que a sociedade tenha consciência disso.

Por que na mão de meros aprendizes é inevitável que o feitiço vire contra o feiticeiro.

-o-

[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

LEIA SOBRE O LIVRO A COR DA TEMPESTADE do autor deste artigo

À VENDA NAS LIVRARIAS CURITIBA E ARTE & LETRA

Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.

Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”

Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.
 

 

Sair da versão mobile