A alegria em aprender
Eu tive um professor de ciências que realmente impactou a minha forma de aprender. Recordo com nitidez suas aulas. Eram divertidíssimas.
Ele iniciava a aula com uma série de perguntas sobre as coisas do nosso dia a dia. Geralmente era um problema real, que ele exagerava com contornos propositalmente absurdos. Coisa que a maioria de nós, depois de rir muito, atalhávamos em contraposições na tentativa de conter tantos exageros, como que a chamar à razão aquele gênio distraído que nos ministrava as aulas.
Depois ele propunha uma espécie de jogo. Uma competição para que resolvêssemos o problema. Os prêmios eram hilários. Objetos estapafúrdios que ele retirava aleatoriamente de sua valise de professor-cientista-maluco no qual ficava patente seu divertido “improviso”.
Por exemplo:
- Uma arruela enferrujada (extraída de um disco-voador “por suas próprias mãos”);
- Uma maçaneta quebrada (da porta da casa de praia de Einstein em Matinhos-PR);
- Uma bolinha de pingue-pongue vermelha (da coleção de Isaac Newton);
- Duas tampinhas de Crush (bebidas por Alexandre Volta em uma convenção científica em Guarapuava-PR em 1915.)
Em assim por diante.
Obviamente essa “valiosa premiação” estava facultada à melhor solução do problema proposto. Coisa que dependia de um conhecimento prévio que geralmente encontrávamos em nosso livro texto.
Assim para ganharmos a partida tínhamos que estudar com alguma antecedência.
Sabíamos de antemão qual era a regra do “jogo” e isso era também divertido.
Além da premiação, que surtia um efeito compensador puramente simbólico, existia o encantamento de solucionarmos um problema real. Algo como a pertinência do aprendizado como se o conhecimento fosse uma ferramenta que devíamos aprender a construir.
Esse segredo é muito difícil de explicar, mas muito fácil de aprender.
A alegria em ensinar
Hoje quando recordo de suas aulas, consigo compreender suas técnicas de ensino e vislumbrar a genialidade de sua grande maestria.
Ele provocava um deslocamento em nossa cognição.
Através de seus questionamentos ele evidenciava um vazio que precisava ser preenchido. E sempre criava novas ligações com aquilo que já sabíamos num encadeamento inovador e surpreendente. Então borbulhávamos de perguntas em nossa curiosidade juvenil, que era saciada apenas para ser novamente aguçada num ciclo que se repetia de forma sempre ascendente.
Porém, o que recordo também com muita clareza era a paixão com a qual ele ensinava.
Ideal e realidade
Sem dúvida, sua influência muito contribuiu para minha escolha profissional.
Felizmente posso seguir seu exemplo e trabalhar com essa mesma alegria, com esse mesmo grau de envolvimento.
Isso porque tenho tido muita sorte em trabalhar em escolas que possibilitam essa liberdade e esse direito do professor – o de ser professor de verdade.
Primeiro, porque o valorizam não apenas como um mero profissional repetidor de informações, mas como um agente que influencia significativamente a construção de nosso pensamento, bem como do nosso futuro.
Segundo, porque adotam um sistema de ensino ético, calcado em um projeto pedagógico consistente, onde o administrativo está a serviço do pedagógico e não ao contrário.
Nessas escolas o professor tem voz. E é professor!
Não é confundido com uma ama-seca ou com um servo guardador de rebanhos do século XV.
O Brasil precisa de mais escolas assim! Escolas que não venderam sua alma!
Seja para o capital e suas cruas regras de mercado. Seja para ideologia do descaso e da má vontade institucionalizada.
Fico triste ao perceber que muitos pais que negligenciam a educação de seus filhos simplesmente os despejam na escola – e seja cada um por si – lembrando os visigodos em um campo de batalha. A culpa é da escola, do professor e do sistema. Nunca da sua má vontade, de seu desamor, de seu desrespeito e negligência para com seus filhos e também para com a sociedade ao largar no mundo pessoas com tal naipe de conduta.
Parece que tal clientela pré-histórica requer uma escola com igual perfil de negligência e abandono e que apenas finge cumprir a tabela. Onde isso vai parar?
Alegria em ensinar e a verdadeira maestria
Por um lado, está claro para todos nós dos benefícios de um aprendizado efetivo calcado na alegria de aprender e na pedagogia do afeto.
Por outro lado, quem terá alegria em ensinar?
- Quando for mal pago?
- Quando for tratado como cidadão de quinta categoria e obrigado a trabalhar 15 horas por dia isso sem contar o trabalho não remunerado que tem em casa (preparo de aulas, preparo e correção de provas, etc.).
- Quando for desrespeitado em sua profissão e/ou pessoalmente ameaçado e intimidado por alunos, pais, coordenadores, diretores e principalmente pelo estado?
(aqui no Paraná até a cavalaria já foi usada por um governador para “intimidar” seus professores).
É por essas e outras razões a realidade do nosso penúltimo lugar em educação. O que é vergonhoso para um país com o tamanho do nosso! O que é vergonhoso e terrível para todos nós!
Quando o Brasil aprender essa simples lição, de que “nenhuma corrente é mais forte que seu elo mais fraco” – quem sabe dará chance aos seus professores de serem mestres de verdade.
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LEIA SOBRE O LIVRO A COR DA TEMPESTADE do autor deste artigo
À VENDA NAS LIVRARIAS CURITIBA E ARTE & LETRA
Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.
Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”
Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.