A capacidade do cérebro humano de se adaptar e mudar, conhecida como neuroplasticidade, sempre foi um tema que atraiu tanto a comunidade científica quanto a imaginação do público. Este conceito se torna ainda mais fascinante quando consideramos casos extraordinários, como indivíduos cegos desenvolvendo habilidades sensoriais aprimoradas, permitindo-lhes se locomover em espaços repletos de obstáculos apenas usando a ecolocalização, ou sobreviventes de AVC recuperando habilidades motoras que se pensava estarem perdidas.
Há muito se aceita a ideia de que desafios neurológicos, como cegueira, surdez, amputação ou AVC, levam a mudanças dramáticas e significativas na função cerebral. Esses exemplos destacam a impressionante capacidade de reorganização do cérebro para compensar funções perdidas. A ideia de que o cérebro, em resposta a lesões ou deficiências, desbloqueia potenciais inexplorados e se reestrutura para adquirir novas capacidades é atraente. Essa noção às vezes é erroneamente associada ao mito, amplamente difundido mas falso, de que usamos apenas 10% do nosso cérebro, sugerindo que temos reservas neurais extensas para situações de necessidade.
Contudo, quão precisa é essa representação das habilidades adaptativas do cérebro para se reorganizar? Estamos realmente aptos a acessar reservas de potencial cerebral inutilizado após uma lesão, ou essas histórias fascinantes levaram a um mal-entendido sobre a verdadeira natureza plástica do cérebro? Em um artigo que escrevemos para a revista eLife, mergulhamos no cerne dessas questões, analisando estudos clássicos e reavaliando crenças de longa data sobre reorganização cortical e neuroplasticidade. O que descobrimos oferece uma nova perspectiva sobre como o cérebro se adapta às mudanças e desafia algumas noções popularizadas sobre sua capacidade flexível de recuperação.
A raiz dessa fascinação remonta ao trabalho pioneiro do neurocientista Michael Merzenich e foi popularizada por livros como “O Cérebro que se Transforma”, de Norman Doidge. As percepções de Merzenich foram baseadas nos estudos influentes dos neurocientistas ganhadores do Prêmio Nobel David Hubel e Torsten Wiesel, que exploraram a dominância ocular em gatinhos. Seus experimentos envolviam suturar uma pálpebra de um gatinho e observar as mudanças resultantes no córtex visual. Eles descobriram que os neurônios no córtex visual, que normalmente respondiam ao estímulo do olho fechado, começaram a responder mais ao olho aberto. Essa mudança na dominância ocular foi vista como uma indicação clara da capacidade do cérebro de reorganizar suas vias de processamento sensorial em resposta a experiências sensoriais alteradas na primeira infância. Quando Hubel e Wiesel testaram gatos adultos, no entanto, eles não conseguiram replicar essas mudanças profundas na preferência ocular, sugerindo que o cérebro adulto é muito menos plástico.
O trabalho de Merzenich demonstrou que até mesmo o cérebro adulto não é a estrutura imutável que se pensava ser. Em seus experimentos, ele observou meticulosamente como, quando os dedos de um macaco eram amputados, os mapas sensoriais corticais que inicialmente representavam esses dedos tornavam-se responsivos aos dedos vizinhos. Merzenich descreveu como áreas no córtex se expandiram para ocupar, ou “tomar o lugar”, do espaço cortical que antes representava os dedos amputados. Esses achados foram interpretados como evidência de que o cérebro adulto poderia, de fato, reconfigurar sua estrutura em resposta a mudanças no input sensorial, um conceito empolgante e repleto de potencial para aprimorar processos de recuperação cerebral.
Esses estudos fundamentais, juntamente com muitos outros focados em privação sensorial e lesões cerebrais, destacaram um processo chamado remapeamento cerebral, onde o cérebro pode realocar uma área cerebral — pertencente a um certo dedo ou olho, por exemplo — para apoiar um dedo ou olho diferente. No contexto da cegueira, supunha-se que o córtex visual era reutilizado para apoiar as habilidades auditivas, táteis e olfativas aprimoradas frequentemente exibidas por indivíduos cegos. Esta ideia vai além da simples adaptação ou plasticidade em uma área cerebral existente alocada a uma função específica; implica em uma reutilização completa de regiões cerebrais. No entanto, nossa pesquisa revela uma história diferente.
Movidos por uma mistura de curiosidade e ceticismo, escolhemos 10 dos exemplos mais emblemáticos de reorganização no campo da neurociência e reavaliámos as evidências publicadas sob uma nova perspectiva. Argumentamos que o que é frequentemente observado em casos de reabilitação bem-sucedidos não é o cérebro criando novas funções em áreas anteriormente não relacionadas. Em vez disso, trata-se mais de utilizar capacidades latentes que estiveram presentes desde o nascimento. Essa distinção é crucial. Sugere que a capacidade do cérebro de se adaptar a lesões não envolve tipicamente a apropriação de novos territórios neurais para propósitos totalmente diferentes. Por exemplo, nos casos dos estudos de macacos de Merzenich e do trabalho de Hubel e Wiesel em gatinhos, um exame mais detalhado revela uma imagem mais matizada da adaptabilidade cerebral. No primeiro caso, as regiões corticais não começaram a processar tipos completamente novos de informações. Em vez disso, as habilidades de processamento para os outros dedos estavam prontas para serem aproveitadas na área cerebral examinada, mesmo antes da amputação. Os cientistas simplesmente não haviam prestado muita atenção a elas porque eram mais fracas do que as do dedo que estava prestes a ser amputado.
Da mesma forma, nos experimentos de Hubel e Wiesel, a mudança na dominância ocular em gatinhos não representou a criação de novas capacidades visuais. Em vez disso, houve um ajuste na preferência pelo olho oposto dentro do córtex visual existente. Os neurônios originalmente sintonizados com o olho fechado não adquiriram novas capacidades visuais, mas sim aumentaram sua resposta ao input do olho aberto. Também não encontramos evidências convincentes de que os córtices visuais de indivíduos que nasceram cegos ou os córtices não lesionados de sobreviventes de AVC desenvolveram uma habilidade funcional nova que não existisse desde o nascimento.
Isso sugere que o que muitas vezes foi interpretado como a capacidade do cérebro de se reorganizar dramaticamente por meio da reconfiguração pode ser, na verdade, um exemplo de sua habilidade de refinar seus inputs existentes. Em nossa pesquisa, descobrimos que, em vez de reutilizar completamente regiões para novas tarefas, o cérebro é mais propenso a aprimorar ou modificar sua arquitetura preexistente. Esta redefinição da neuroplasticidade implica que a adaptabilidade do cérebro não é marcada por um potencial infinito de mudança, mas por um uso estratégico e eficiente de seus recursos e capacidades existentes. Embora a neuroplasticidade seja de fato um atributo real e poderoso do nosso cérebro, sua verdadeira natureza e extensão são mais limitadas e específicas do que as amplas mudanças que costumam ser retratadas em narrativas populares.
Então, como pessoas cegas podem se locomover puramente com base na audição ou indivíduos que sofreram um AVC recuperam suas funções motoras? A resposta, segundo nossa pesquisa, não está na capacidade do cérebro de sofrer uma reorganização dramática, mas no poder do treinamento e aprendizado. Estes são os verdadeiros mecanismos da neuroplasticidade. Para uma pessoa cega desenvolver habilidades aguçadas de ecolocalização ou um sobrevivente de AVC reaprender funções motoras, um treinamento intensivo e repetitivo é necessário. Este processo de aprendizagem é um testemunho da notável, mas limitada, capacidade de plasticidade do cérebro. [Live Science]