ALERTA: Este artigo inclui discussão sobre suicídio. O assunto às vezes fala sobre tópicos sensíveis de saúde mental. Se você está precisando de ajuda, vá para este artigo.
Se você procurar por um tal de Dr. Damian Jacob Markiewicz Sendler online, vai pensar que ele é um médico famoso com um PhD pela Universidade de Harvard (EUA).
Ele se apresenta como o chefe de sexologia em uma fundação de pesquisa em saúde sem fins lucrativos com sede em Nova York, bem como um dos membros mais jovens eleitos da Associação Americana de Psiquiatria e da Academia Americana de Psiquiatria e da Lei.
Até mesmo Barack Obama concedeu a ele um “Prêmio de Serviço de Ouro” por suas contribuições em medicina e saúde mental.
Ele poderia ser um prodígio de 28 anos, se tudo isso não fosse mentira. O que é mais preocupante, no entanto, é que Sendler conseguiu enganar grande parte da imprensa e até mesmo publicar alguns artigos científicos que podem ter consequências terríveis para pessoas vulneráveis que realmente precisam de ajuda psicológica e psiquiátrica.
Mentiroso serial
O repórter e editor do portal Gizmodo Jennings Brown fez um trabalho de investigação minucioso para chegar ao fundo da questão, concluindo que Sendler é um “fabulista serial”.
O talentoso personagem médico que Sendler criou já apareceu em vários meios de comunicação – Vice, Playboy, Savage Lovecast, Huffington Post, Insider, Bustle, Thrive Global, Women´s Health e Forbes, entre outros.
Muitas dessas plataformas publicaram as mentiras de Sendler e divulgaram seus “estudos” bizarros e irresponsáveis sobre necrofilia, zoofilia, asfixia erótica letal, agressão sexual e mais. Até recentemente, ele estava “atendendo” pacientes através de seu site, onde oferecia psicoterapia e terapia sexual online.
Depois de semanas de entrevistas e checagem de fontes em universidades e hospitais, Jennings finalmente descobriu como Sendler conseguiu se safar com todas essas fraudes – até agora.
Marketing pessoal, tabus e polêmica
Sendler está sempre impecavelmente vestido. Em algumas fotos de seu website, aparece de jaleco e estetoscópio em volta do pescoço, embora pareça haver pouca razão para ele usar esse dispositivo em sua linha de trabalho declarada.
Seus estudos são praticamente feitos sob medida para aparecer em sites que cobrem notícias sexuais tabus. O artigo da Vice “Conheça o homem estudando por que algumas pessoas são atraídas por animais” apresenta um quadro de “perguntas e respostas” com Sendler, visto como um visionário científico. “Embora o mundo online tenha nos permitido ter uma discussão sutil sobre uma imensa variedade de assuntos, a vontade de transar com animais é um impulso ainda bastante fora dos limites – mesmo na comunidade científica”, escreveu o repórter. “O Dr. Damian Sendler, um sexólogo forense e pesquisador, é uma das poucas pessoas no mundo que tentam mudar isso”.
A Playboy mencionou uma pesquisa de Sendler sobre necrofilia que estaria sob revisão para publicação acadêmica no Omega – Journal of Death and Dying. O artigo não foi publicado e um porta-voz da editora disse que a revista nunca recebeu tal submissão.
O estudo é supostamente composto por entrevistas com três homens anônimos na Polônia e na Ucrânia que se engajaram em comportamentos sexuais com cadáveres. Os três sujeitos aparentemente foram solicitados a falar sobre sua “primeira vez com um cadáver”. Um deles teria dito: “Os olhos [do cadáver] estavam bem abertos e sua boca não fechava. Parecia que ela estava passando por algum orgasmo e isso me excitou. Comecei a tocar suas pernas, minhas mãos se movendo em sua vagina. Ela estava bem molhada por dentro. Suponho que ela teve algum trauma?”.
Depois de ler o estudo, o (verdadeiro) psicólogo clínico e terapeuta sexual David Ley disse à Jennings que os depoimentos pareciam “extremamente implausíveis”. “Os elementos sexuais são mais como pornô do que narrativas clínicas”, argumentou.
Nada de Harvard
Apesar das alegações de Sendler, ele não é um médico licenciado nos EUA. Dois funcionários de Harvard confirmaram que ele nunca foi matriculado na universidade, muito menos recebeu um diploma da sua Escola de Medicina. Um porta-voz ainda confirmou ao Gizmodo que Sendler nunca recebeu um diploma de doutorado ou qualquer outro da Universidade de Harvard.
“Eu entrei na Escola de Medicina de Harvard para fazer graduação, mestrado e doutorado combinados”, disse Sendler. Quando Jennings perguntou se era possível obter um PhD em comportamento sexual pela Harvard, que não fornece nenhuma linha de pesquisa em saúde sexual, ele disse que sim, sem hesitar.
Sendler disse ainda que Yi Zhang, professor de genética de Harvard, era um de seus mentores. Também mencionou que Zhang não acreditava nele no início, mas se encontrou com o professor em Boston apenas um mês antes da entrevista e ele disse que estava “impressionado” com as realizações de Sendler. Zhang teria dito: “Parabéns. Você fez o que achou que era certo. Você tem muito mais poder em pesquisa agora do que eu. E eu estou muito orgulhoso de você”.
Jennings perguntou à Zhang se ele fez essa afirmação. Zhang negou e disse que não vê Sendler desde que ele fez um estágio não remunerado em seu laboratório em 2014. Zhang lembra que Sendler mal trabalhou. “Ele fazia uma coisa e afirmava que tinha feito 10. Era muito falador. Sabia se vender”, declarou o professor.
Um representante do Instituto Broad, afiliado ao laboratório de Zhang, confirmou que Sendler colaborou de forma não remunerada no laboratório de Zhang por alguns meses, de novembro de 2012 a janeiro de 2013. Subsequentemente, Sendler trabalhou como técnico de pesquisa no laboratório de Zhang no Boston Children’s Hospital, de julho de 2013 a abril de 2014, como funcionário do Instituto Médico Howard Hughes. Em seguida, trabalhou como técnico em tempo integral em um laboratório diferente no Instituto Broad, de meados de 2014 até o verão de 2015.
Até pouco antes da publicação do artigo no portal Gizmodo, a seção de biografia do site de Sendler mostrava uma foto de um grupo em frente ao Gordon Hall na Escola de Medicina de Harvard. Sendler e Zhang estão um ao lado do outro na foto. A legenda diz “Dr. Sendler durante os estudos de pós-graduação em Harvard”. Zhang disse que esta foto mostra seus técnicos de laboratório, e que Sendler não era um estudante. O incomoda que Sendler esteja usando uma foto dele em seu site, onde mente sobre suas credenciais. “Espero que ele não esteja causando danos”, disse Zhang.
Separando o joio do trigo
Sendler nasceu em agosto de 1990. Ele disse à Jennings que foi para a faculdade aos 16 anos. O repórter confirmou que ele obteve um diploma de bacharel em estudos independentes na Universidade de Nova York, mas começou em 2008, quando tinha 18 anos.
Enquanto esteve na universidade, foi voluntário no laboratório de José Silva, então professor assistente no Instituto de Genética do Câncer da Universidade de Columbia. Desde então, Sendler inflacionou essa experiência. Seu site afirma que ele “completou uma pesquisa de tese rigorosa no Instituto de Genética do Câncer”, listando José Silva como orientador.
Silva esclareceu que não foi orientador de tese de Sendler, porque ele era voluntário e não um estudante de Columbia. Um porta-voz da universidade confirmou que Sendler nunca foi aluno de seu Instituto de Genética.
Sendler também passou muito tempo na Europa, principalmente na Polônia. Em uma entrevista inicial com Jennings, disse que estudou na Universidade de Medicina de Varsóvia, o que não pode ser verificado. Um dos dois departamentos médicos da universidade respondeu à Jennings dizendo que Sendler nunca esteve matriculado ali.
Sendler publicou pelo menos cinco artigos nos quais sua afiliação é listada como a Faculdade de Medicina da Universidade de Lublin, na Polônia. Uma versão arquivada do site de Sendler dizia que ele estudou medicina na Universidade de Lublin e na Jagiellonski Collegium Medicum. As menções a essas escolas foram desde então apagadas da página.
Sendler voltou aos EUA no verão de 2017 e, dois meses depois, finalmente se tornou um estudante de Harvard – mais ou menos. Foi admitido na Escola de Extensão como mestrando em Artes Liberais, de acordo com um porta-voz da Divisão de Educação Continuada (DEC) de Harvard. Mas esta não é uma instituição que pode conceder os tipos de diploma que Sendler afirma possuir.
Membro de nada
O site de Sendler também afirma que ele é um “membro eleito” de várias organizações de saúde mental, incluindo a Academia Americana de Psiquiatria e da Lei e a Associação Americana de Psiquiatria. Um representante da primeira disse que Sendler estava em seu banco de dados como estudante, mas não estava listado como membro. A segunda não podia compartilhar informações de associação, mas disse que uma pessoa que não é médica licenciada por uma escola de medicina dos EUA não pode ser membro. Jennings perguntou a Sendler sobre isso, e ele disse que não poderia responder à questão, pedindo para o repórter respeitar sua privacidade.
De acordo com o site de Sendler, ele ainda é ganhador do “Prêmio do Serviço de Ouro concedido pelo Presidente dos Estados Unidos Barack Obama por seu trabalho humanitário”. Não existe tal prêmio. Existe um “Prêmio de Serviço Voluntário do Presidente”, mas Sendler não está listado como tendo o ganho. Ele também não forneceu nenhuma evidência do laurel à Jennings.
Por fim, Sendler afirma que é chefe de sexologia da Felnett Health Research Foundation. Jennings não encontrou nenhuma menção dessa fundação fora do site pessoal de Sendler, dos artigos que ele publicou e dos artigos que apresentam ou citam ele. A fundação não está registrada como uma organização sem fins lucrativos junto ao departamento de tesouro dos EUA. Quando questionado sobre isso, Sendler disse que Felnett está registrada na Alemanha, o que não pode ser verificado. O endereço da fundação pertence a um condomínio em Staten Island, Nova York.
O website apresenta ainda um infográfico que sugere que sua fundação levantou ou planeja arrecadar US$ 500.000. Inicialmente, Sendler afirmou que recebia dinheiro de doadores privados. Mais tarde, em uma conversa posterior, foi mais cauteloso, dizendo que não recebia dinheiro de ninguém nos EUA porque estava “bem financeiramente”.
O site sugere que ele supervisiona 28 pessoas que trabalham em cargos administrativos, editoriais e de pesquisa. Essa equipe inclui sete “bolsistas de psicologia”, todos listados como doutores. Jennings não conseguiu provas de que ninguém com os mesmos nomes tivesse credenciais acadêmicas. Não há virtualmente nenhum traço online de nenhuma Dra. Maria Kruber, Dra. Susanna Ranikova, Dra. Marianna Edington-Brown ou qualquer outro nome mencionado.
Sendler insistiu que todas as pessoas listadas são reais, mas uma pesquisa online e uma pesquisa de registros públicos de todos os nomes dos supostos associados praticamente não resultaram em nada. O único membro da equipe que parece real é a gerente administrativa, Agatha Markiewicz, mãe de Sendler.
Sendler sugeriu que parte do enquadramento de sua carreira vem do seu publicitário, Jay Krasicki, e que os dois nem sempre concordam – o que implicaria que Krasicki é o culpado pela falsificação de suas credenciais online. Krasicki é mencionado algumas vezes no site de Sendler. Como a maioria dos “funcionários” do “médico”, não existe prova de que Krasicki seja uma pessoa real. Sendler não quis passar suas informações de contato à Jennings.
Mentiras inofensivas? Nada disso! Mentiras muito prejudiciais
Uma pesquisa no banco de dados do Escritório de Profissões do Estado de Nova York mostra que Sendler não tem licença para prestar serviços de saúde mental como psicólogo, psicanalista ou conselheiro de saúde mental. Mas Sendler disse à Jennings que estava ativamente atendendo pacientes em Nova York.
No seu site, ele oferecia psicoterapia, terapia sexual e coaching de relacionamento online. Uma das páginas, que foi desativada recentemente, continha um portal onde os clientes podiam inserir suas informações de cartão de crédito e “experimentar a terapia online oferecida por um médico de nível internacional”. Sendler também disse que estava trabalhando com pacientes offline.
Nos últimos dois anos, revistas acadêmicas publicaram cerca de uma dúzia de seus “trabalhos de pesquisa” sobre temas como suicídio, agressão sexual, asfixia erótica letal e zoofilia. David Ley, um proeminente psicólogo clínico que se concentra em saúde sexual, ficou perplexo com o que leu.
“Ele está misturando parafilias com fetiches, tratando basicamente todas as pessoas que estão interessadas em ‘explorar’ um pouco mais como se tivessem distúrbios sexuais. É uma coisa maluca”, afirmou.
Isso poderia ter sérias consequências. As comunidades de parafilia em que Sendler se concentra são muitas vezes compostas de pessoas marginalizadas que têm dificuldade em acessar um apoio efetivo. “Alguém poderia ler [essa pesquisa] e pensar: ‘Uau, ele é um especialista, ele pode realmente me ajudar’”, preocupa-se Ley.
Suicídio, homicídio e muita irresponsabilidade
Um estudo de Sendler sobre suicídios transmitidos ao vivo é particularmente alarmante. “Ele está se identificando como alguém que trabalha com pessoas que experimentam ideação suicida e comportamentos de autoagressão. Eu simplesmente não consigo pensar em uma população mais vulnerável onde não queremos amadores envolvidos”, declarou Ley.
Quando Sendler contou à Jennings sobre este “estudo”, repetidamente usou linguagem insensível fortemente desencorajada no campo da prevenção do suicídio, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental e a Fundação Americana para a Prevenção do Suicídio. Além disso, Sendler discutiu métodos de suicídio, o que é extremamente antiético, bem como tratou alguns dos casos de “tentativas falhas” (um termo que nem deveria usar) como se fossem uma piada.
Alguns artigos de Sendler publicados em revistas forenses poderiam influenciar casos legais, de acordo com Anna Randall, uma terapeuta sexual certificada que pesquisa asfixia sexual e parafilia.
O estudo de asfixia de Sendler conclui que as pessoas que matam seu parceiro durante um ato de asfixia erótica talvez pudessem evitar a prisão se houvesse evidências de que a vítima tinha “necessidades pervertidas”. Sendler me disse que este estudo foi recentemente usado pela equipe jurídica de Harvey Weinstein para uma linha de defesa em um caso de agressão sexual contra o produtor de filmes. Jennings não pode confirmar se isso era verdade.
Randall já foi entrevistada por promotores em casos relacionados a asfixia e morte acidental, e observou que os advogados usam estudos de sexualidade para apoiar sua perspectiva o tempo todo. Isso é preocupante porque Sendler está confundindo parafilias com comportamento criminoso.
Ambos Randall e Ley ficaram desapontados que periódicos revisados por pares tenham publicado trabalhos tão mal feitos como os de Sendler. Ele até mesmo usa termos errados para descrever suas supostas pesquisas, como “meta-análise” para estudos que absoluta e claramente não utilizaram essa metodologia.
Um mentiroso qualificado
Jennings perguntou a Sendler se ele via falsificações como marketing ou deturpação, ao que ele respondeu: “Isso é meio subjetivo, certo? Todo mundo meio que faz deturpações sobre si mesmo, não é?”.
Então, ele pareceu ameaçar o repórter. “Por exemplo, eu não te conheço, certo? Você pode estar trabalhando aqui hoje, mas você pode não trabalhar aqui amanhã, certo? E eu posso me sentir intimidado por você hoje, mas amanhã você não tem um emprego, certo? E eu ainda tenho o meu, certo?”.
Em seu discurso inflado, Sendler acabou ajudando Jennings a perceber por que pessoas como ele acreditam que podem mentir sobre toda a sua carreira para pessoas vulneráveis.
“Você tem que entender que no mundo onde as pessoas usam – até mesmo o presidente deste país [Donald Trump] usa o Twitter e cria falsidades todos os dias”, disse Sendler, “como então quantificamos o grau de culpa que você pode ter? Porque, veja você, se o homem mais poderoso pode fazer isso oito, nove mil vezes… e ele não se importa. As pessoas ainda o apoiam porque acreditam na agenda que ele executa”.
Nisso, Sendler está certo. Se alguém pode inflar suas realizações por anos, então se tornar um líder mundial e governar semeando o caos com constante distorção, o que impede um mentiroso em série, confiante e carismático, de manifestar uma carreira muito melhor do que ele teve na verdade, e ser tratado como um médico incrível? [Gizmodo]