Eu sempre me perguntei por que nossa espécie, Homo sapiens, que evoluiu na África cerca de 200.000 anos atrás, parecia não fazer absolutamente nada de especial nos seus primeiros 150 mil anos de existência. Até onde sabemos, apenas há cerca de 50.000 anos o primeiro sinal de pensamento criativo surgiu, com belas pinturas rupestres encontradas na Espanha, na França e na Indonésia.
O que aconteceu que mudou tão intrinsecamente o ser humano?
Na mesma época em que essas pinturas apareceram, uma nova subespécie conhecida como seres humanos anatomicamente modernos, ou Homo sapiens sapiens, surgiu. Anatomicamente falando, esses seres humanos modernos eram mais delgados do que seus ancestrais mais antigos; eles tinham menos cabelo e crânios menores. Eles se pareciam basicamente como nós somos hoje.
Contudo, essas mudanças não foram apenas cosméticas.
Dois artigos publicados recentemente deram uma luz sobre a forma como o desenvolvimento revolucionário de ossos finos e menores pode ter influenciado o crescimento da cultura cooperativa, o nascimento da agricultura e da dominação humana do planeta.
Rostos femininos
O primeiro destes artigos expõe uma análise de crânios fossilizados de nossos ancestrais durante este período de transição. O estudo que resultou no artigo foi realizado por uma equipe liderada por Robert Cieri na Universidade de Utah, nos Estados Unidos.
Cieri e seus colegas descobriram que a curvinha que temos na testa, antes do nariz, tornou o formato do rosto significativamente menos proeminente, e até as feições masculinas se tornaram mais semelhantes às femininas. Eles se referiram a isso como um processo de feminização craniofacial, o que significa que conforme o Homo sapiens passou por uma redução de crânio, ele passou a ter uma aparência mais plana e mais “feminina” em sua forma.
Eles pensam que esta mudança deve ter acontecido devido a níveis mais baixos de testosterona, pois há uma forte relação entre os níveis desse hormônio e rostos longos com testas prolongadas, o que podemos perceber hoje como características mais “masculinas”.
A sociedade agradece
Pessoas com níveis mais baixos de testosterona têm menos probabilidade de serem explosivas ou espontaneamente violentas, e, portanto, têm mais tolerância e melhor convivência social. Isto tem um enorme efeito sobre a forma como nossa sociedade se comporta e se constitui.
Como visto entre os seres humanos de hoje, vivemos em populações com densidades extremamente altas com uma incrível quantidade de tolerância social. Assim, uma redução da violência “espontânea” deve ter sido um pré-requisito essencial para que fôssemos capazes de viver em grupos maiores e desenvolver uma cultura de cooperativadade. Em outras palavras, foi uma características essencial para a sobrevivência (e consequente desenvolvimento) da espécie.
Mais femininos = menos agressivos
A ideia de que os seres humanos se tornaram mais femininos, menos agressivos e, portanto, poderiam cooperar em grandes grupos é certamente muito intrigante, uma vez que teria permitido que indivíduos com diferentes habilidades fossem valorizados em seus grupos sociais e também fossem reprodutivamente bem sucedidos devido à redução da violência entre machos.
Na maioria dos primatas do sexo masculino, ser fisicamente mais forte tende a ser uma característica de dominação, mas os primeiros seres humanos mais inteligentes ou mais criativos podem ter se sobressaído e se destacado em relação aos mais fortes.
Autodomesticação
Uma questão permanece, no entanto: como nos tornamos mais femininos, menos violentos e mais criativos?
O segundo artigo da série pode nos dar algum esclarecimento sobre essa pergunta. O estudo, liderado por Brian Hare na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, fez uma comparação entre os chimpanzés (Pan troglodytes) e bonobos (Pan paniscus) na África Ocidental, duas espécies estreitamente relacionadas que viviam em condições ambientais muito semelhantes de ambos os lados do rio Congo.
Uma distinção fundamental entre as duas espécies é a diferença de tamanho entre machos e fêmeas, chamada “dimorfismo”. Chimpanzés machos são significativamente maiores do que as fêmeas dessa mesma espécie, enquanto a diferença entre bonobos é muito menor. Esta diferença é acionada por diferentes níveis de testosterona.
O tamanho é apenas uma manifestação de diferenças mais profundas que também aparecem na forma como os animais interagem uns com os outros. Os chimpanzés, sobretudo do sexo masculino, são muito agressivos, mas a violência dentro ou entre grupos é quase inexistente entre os bonobos. Como estas duas espécies têm um ancestral comum, deve ter havido uma forte seleção natural no sentido de feminilizar os bonobos.
Hare e seus colegas sugerem um processo de autodomesticação pelo qual os indivíduos violentos são punidos e impedidos de se reproduzir.
As características exibidas pelos bonobos são muito semelhantes às alterações observadas em espécies em que os seres humanos têm sido domesticados, como cães, vacas, porcos-da-índia e raposas.
Eles acreditam que a razão pela qual os bonobos foram capazes de “se feminilizar” e os chimpanzés não é que, no lado oriental do Congo, onde os chimpanzés vivem, eles estão em concorrência direta com os gorilas, enquanto que os bonobos, que vivem no lado ocidental do rio, não têm concorrência.
O professor de Harvard Richard Wrangham, coautor do artigo de Hare, sugeriu em um discurso recente que o mesmo processo pode ter acontecido com os primeiros humanos.
Igualdade entre os sexos
Esta feminização através da autodomesticação não apenas pode ter feito os seres humanos mais pacíficos e com um porte físico mais uniforme, como também pode ter produzido uma sociedade mais igual do ponto de vista sexual.
Um estudo recente realizado por pesquisadores norte-americanos mostrou que, em grupos de caçadores-coletores no Congo e nas Filipinas, as decisões sobre onde viver e com quem viver são feitas igualmente por ambos os sexos.
Apesar de viverem em pequenas comunidades, isso resultou em caçadores-coletores se relacionando com um grande número de indivíduos com os quais eles não tinham laços de parentesco. Os autores do estudo argumentam que isso pode ter se provado uma vantagem evolutiva para primeiras sociedades humanas, pois teria fomentado redes sociais mais amplas, a cooperação mais estreita entre indivíduos não aparentados, uma maior escolha de companheiros e chances reduzidas de endogamia.
O movimento frequente e interação entre os grupos também fomentou a partilha de inovações, o que pode ter ajudado a disseminação da cultura.
Como Andrea Migliano, líder do estudo, aponta, a igualdade entre os sexos sugere um cenário em que os traços humanos sejam únicos, como a cooperação entre indivíduos não aparentados, o que poderia ter surgido em nosso passado evolutivo.
Pode ter sido apenas com a ascensão da agricultura que um desequilíbrio entre os sexos ressurgiu, já que neste cenário os homens foram subitamente capazes de concentrar recursos suficientes para manter várias esposas e muitos filhos. Na verdade, o estudo relacionou uma amostra de formas faciais ligeiramente mais masculinas e emergente na face de agricultores que se parece com os seres humanos primatas.
Evoluindo de um jeito legal
No momento, temos algumas sugestões preliminares do que pode ter acontecido entre 50.000 e 10.000 anos atrás. Uma delas é que os seres humanos podem ter sofrido uma autodomesticação, eliminando ao longo de muitas gerações indivíduos incapazes de controlar sua violência “espontânea”.
Isto não está tão longe da realidade quanto parece. Estudos da tribo Gebusi em Papua Nova Guiné feitos por Bruce Knauft mostraram níveis significativos de mortalidade masculina devido à tribo decidir que o comportamento de um indivíduo é tão intolerável que, para o bem de todos, ele deve ser morto.
A violência proativa no ser humano – ou seja, pensada, discutida e planejada – é usada para conter, controlar e abater indivíduos reativamente violentos.
Este processo, combinado com opções de acoplamento do sexo feminino ao longo de milhares de anos, poderia ter selecionado homens com baixa testosterona e características mais femininas, o que por sua vez conduz a uma sociedade mais igualitária em termos de gênero e ao início da nossa cultura cumulativa. [discovermagazine]