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Premeditação

[box type=”shadow”]Este é o primeiro conto que o renomado autor André Carneiro publica na internet. Por isso estaremos sorteando uma cópia do livro de sua autoria Confissões do Inexplicável para um dos comentáristas deste conto.[/box]

Uma caverna úmida e quente, o tribunal. Sete jurados olhavam o vácuo. Quatro eu conhecia. José Sabino, negociante. Tinha uma filha. O Ferreira era fazendeiro. Conversava com ele, às vezes. Mais o Alfonso e o velho do bilhar. Dos outros me lembrava vagamente. Aquele do canto não ouvia. Brilhava a ponta do meu sapato, a sola mais gasta nos lados. Os joelhos juntos e comprimidos, enquanto o promotor lançava os braços para a frente, a palmeira do jardim aparecia e desaparecia atrás do meu ombro.

“… Crime brutal e premeditado, não importam os motivos sentimentais que a defesa lembre, para justificar o ato deste criminoso sem escrúpulos. Houve premeditação provada com a carta ao seu pai…”

O escrivão espiou a paisagem pela janela escancarada. Tremia o céu azul, as mãos do promotor batiam no ar pesado, dois leques desesperados. Não podia me virar. Nas minhas costas, cochichavam. E o pai, onde estaria, com seus olhos de água, os dentes brancos, como os de Elvira?

As mãos apertaram a borda da mesa. As veias desenharam curvas azuis. “… lembrem-se senhores jurados, dos dizeres desta carta, na sala secreta. Aqui está na pg.45 dos autos: Querido papai, Fernando me convenceu de que não podíamos mais viver. Morreremos os dois hoje. Perdoe sua filha. Elvira”

Os olhos castanhos de Elvira. A rua comprida, nós dois pisando leve, numa prudência inútil. Ela tentou retirar a mão. Que importância tem? Todos andam de braço. Elvira puxou, os músculos não obedeciam. Duas horas antes, nossos rostos estavam juntos, no baile. Você dança maravilhosamente, Elvira. Fomos ao terraço e beijei-a na face. Os olhos muito perto viraram um só. “Não, não quero.” Suas mãos no meu peito, os olhos dizendo sim. “Fernando, você me acha uma garota vulgar?” Minha mão deslizou na sua cintura. A rua se desenrolava vazia. As casas olhando uma para as outras, as beiradas como bonés. Lá no fim, a casa. Um muro baixo, com portão de ferro. Olho os lábios de Elvira. São grossos e vermelhos de batom.

Não, você não é vulgar, não confundamos os gestos normais com sua personalidade. Que importância há, repetir o que era velho no tempo de Cleópatra?

A casa vem vindo, o ruído dos passos ficou para trás, na calçada, agora os pés trituram a areia fina.

Há um perfume de cabelos longos. Elvira treme. A casa parou em nossa frente. Não tem medo de morar aqui sozinha? Não esperei resposta, as palavras correram inúteis. Nossos lábios se trituraram, meu olho esquerdo dentro dos seus cabelos… “Não, não, não é direito.”

Boa noite. Afastei-me. Elvira olhou-me decepcionada e foi para dentro do jardim. Seus passos rangeram no cimento. A chave saiu da bolsa e o brilho niquelado desapareceu na fechadura. Entrei. Eu abro para você, Elvira. Ela recuou, uma frase suspensa nos lábios. A porta girou numa aquiescência cúmplice e o interruptor da luz deu um estalo seco. Elvira repetiu como um disco quebrado: “Não é direito, não é direito.”

É relativo o peso das palavras. O que não é direito? Abri a porta, estou olhando para você. Só. Deixe a bolsa na mesa, sente-se aqui. Ela encostou-se à mesa, os seios altos arfando compassados. Seu pai virá amanha? Elvira balançou a cabeça: “Fale baixo, a empregada pode ouvir.” O inevitável rondava pela sala. Estávamos em transe, tudo se dispersava. Os olhos brilhantes, os músculos nítidos agarrando a borda da poltrona, Elvira ainda recostada na mesa, como um felino em expectativa. As idéias saiam frouxas, de repente um silêncio enorme cobria tudo. nos dois afogados dentro, a poltrona dando estalos ridículos. Levantei-me: Elvira disse “não” com os lábios entreabertos. No corredor, um quarto azul me acenava. Fui levando-a devagarinho, o silêncio atrás, como um cão de fila.

O quarto azul, os cabelos longos de Elvira. “Senhores jurados: minha missão neste tribunal não se revestirá de patéticos apelos. Nem de sentimentalismos baratos. Devemos fazer justiça, portanto estudaremos os autos com a visão fria da verdade. “Na noite de dez de novembro.”

Onde estivesse, Elvira estaria rindo. Apenas aquele trejeito dos lábios, sarcástico e desamparado ao mesmo tempo.

“Fernando, espere-me hoje às oito horas.” Hoje não posso, tenho serviço atrasado… Porque tudo mudara, depois daquilo? Meus olhos descobriram “rouge” no seu rosto. o vestido azul era deselegante. aquela maneira de segurar meu pulso, numa carícia monótona… Desaparecera o amor ou não tivera sequer existido? Detesto explicações. Amor… Os cabelos longos, os lábios vermelhos, a voz grave explodindo num riso inexplicável. Fizera-lhe declarações, até literatice. Mas um pudor do lugar comum impedia-me de repetir as frases feitas que ela gostaria de ouvir. Elvira tornou-se amarga. “Pelo amor de Deus, Fernando, você não compreende”. Eu compreendia bem, e temia. Sentia-me coagido a legalizar burocraticamente um ato ao qual nunca dei muita importância. De quem a culpa? Os olhos de Elvira umedeciam. Limpava-os com o lenço e beijava seu rosto.

“Fica suspensa a sessão por vinte minutos.” Saio da sala, os dois guardas ao meu lado, a suada farda amarela. Minha cabeça baixa, seria inútil erguer os ombros agora. Na última fila encontrei os olhos de Beatriz. Boiavam neles uma dúvida e a pergunta: “E se tivesse sido comigo?…” A palavra assassino sibilava pela sala. Senti atrás de mim o olhar de Beatriz. Beatriz pequenina, de zigomas salientes e sorriso ingênuo. Beatriz a querer saber por quê? Por quê? Seus lábios infantis eram um repouso. Não tinham a segurança de Elvira. Um anel absurdamente grande na mão pequena.

Ela não acreditara. Eu repeti: Não me casarei nunca com você, Beatriz. E trouxe-me num atordoamento de carinho, eu me deixando levar, no fim tudo se resolve.

Elvira soube. E um silêncio enorme se acumulou até o transbordamento penoso: “Fernando, contaram-me algo de Beatriz e você…” Veio à explicação difícil, as lágrimas insuportáveis… As duas fardas conduziram-me de volta. Entardecia já. Um vento fresco agitou os papéis na mesa do juiz. Nas faces dos jurados transparecia um cansaço irremediável. Que vontade de olhar para trás. Ódio ou piedade? Elvira morta, Beatriz na última fila, o promotor bebendo água aos goles: “Senhores jurados, deduz-se claramente das circunstâncias, que o réu deveria ter prometido casamento à sua vítima. Depois, acovardado…”

Elvira fizera o trejeito com os lábios carnudos. Eu pronunciei a frase lentamente, como se recitasse uma lição: não me fale mais em Beatriz. Elvira, eu vou casar-me com você. Ela descerrou os lábios. Os dentes brilharam um instante antes que se desprendesse a velha interrogação. Amor, sempre o amor. Fui rude. Coisas eternas me repugnavam, enchiam-me de tédio as definições. Para que disseminar meus sentimentos. Tirá-los da sua acomodada displicência? Íamos casar. Papéis selados ratificam tudo. Elvira chorou. Puxei-a para meus ombros, minhas mãos tecendo uma carícia tímida nas espáduas. Beijei-a, mas a despedida teve um sabor de coisa incompleta e nos seus lábios, encontrei o gosto áspero das palavras contidas.

Contei parte da verdade a Beatriz. Ela abriu os olhos espantados. Sua transparência não comportava sutilezas, acreditou em tudo. A testa abaulada chegava aos meus lábios que roçaram seus cabelos num adeus quase paterno. Agora pertencia a Elvira somente. A sensação de posse me irritava. Elvira empregava o plural, meu colarinho apertava como a coleira de um cãozinho. Ela escondia alguma coisa. Estaria grávida? Se não estivesse, qual a minha atitude? Nem eu sabia.

Beatriz foi virando nevoeiro, não me importei mais. Desmanchara-se o triângulo. Mas éramos três ainda. Eu, Elvira e aquilo que estava por vir. Ela chorava. Eu dava-lhe o lenço e não dizia nada. O silêncio era uma coisa sólida, material, um muro definitivo.

Elvira abraçou-me como não fazia há tempos. A frase se destacou nítida, no ar: “Fernando, papai irá viajar amanhã.” Julguei entender-lhe o sentido. Mas não, certamente não era isso. E se estivesse tentando agora a arma dos seus encantos?

“Fernando, papai irá viajar amanhã.”

Já sei Elvira, quando volta? Não ouvi a resposta. Lembrei-me daquele dia, encostada na mesa. Os seios altos, olhos molhados, nervos arrepiados de desejo. A palavra “não” nos lábios. Nunca tivéramos outra oportunidade, depois daquilo. Nem queríamos ter. Tudo fôra demasiado rápido, as obrigações me afligiam. Amanhã o pai iria viajar. Poderíamos estar sós, na casa. Ninguém sabia de nosso segredo, nem Beatriz bobinha não percebera nada. Elvira era minha noiva. Íamos casar…

O Código Penal deslizou pela mesa deixando um sulco de poeira. A palmeira oscilou por trás dos ombros: “… cianureto de potássio, senhores jurados, o réu empregou um veneno violento e de fácil procura, mas a carta foi a sua perdição. A carta cuja existência ele desconhecia, o que prova ter sido sua intenção, não um pacto de suicídio, mas um assassinato puro e simples…”

Saúvas vermelhas no pozinho branco. O Ferreira, fazendeiro, devia saber. Uma colherinha só, morte instantânea.

“Fernando, papai irá viajar amanhã.” A maldita carta debaixo do travesseiro. Meus ouvidos zuniam. Mudei a posição das pernas, devagar, antes que dormissem, O jurado do canto não ouvia.

O vento balançou os cabelos do promotor. O oficial de justiça foi fechar a janela e os jurados olharam, como se dali fosse sair algo.

A pg. 46 dos autos não dizia a verdade. Em 10 de novembro passei um dia calmo. Elvira misturada com o céu azul, com a água, com as árvores. À noite, encontrei-a debaixo da mesma lua e das mesmas estrelas, os eucaliptos oscilando os cimos prateados, como velhas cabeças desiludidas. A paisagem ignorava o drama, fazendo a mais gasta das reprises.

Elvira estava de olhos brilhantes, a carta já dormia, sufocada no travesseiro. Minha mão na sua cintura, a rua vazia. A casa foi se aproximando. O portão de ferro entreaberto, a chave na fechadura, o sofá. A mesa estava posta. “Fernando, preparei café para nós.” Eu não gostava de café. “Venha, venha, vamos tomar.” Sentei-me e abri o guardanapo. Parecia haver algo estranho e falso, como um espetáculo de mágico decadente. Elvira derramou o líquido negro nas xícaras e disse: “Agora vou me vingar de você.” E bebeu. Quase imediatamente o corpo soltou-se da cadeira e foi para o chão, a boca num rictus repugnante. Julguei que desmaiara, sacudi-a rudemente. Como seria se não acordasse logo, minha presença ali…

Corri atrás de um médico e inventei uma história.

“Esta morta” Franzindo as rugas profissionais, o Dr. Bueno insistiu: “Está morta por cianureto, ainda há um resto aqui.”

O juiz explicou os quesitos aos jurados. A escolta amarela levou-me para fora. Quando voltei, Beatriz chorava na última fila. Não vi o pai de Elvira. À noite entrara sub-reptícia, enchendo de ângulos o rosto fechado do advogado. Sabíamos o resultado.

De uma cortina negra veio surgindo o rosto de Elvira. Os cabelos escorriam pelos ombros, os irônicos lábios curvados, o olhar úmido de ódio. Foi de sua boca que ouvi a sentença: “Quinze anos de prisão”.

Quando a sala se esvaziou levaram-me para a cela. Elvira me esperava lá, a boca num rictus repugnante, o rosto pálido. Nas sombras, no teto, nas paredes esburacadas…

André Carneiro não é só um dos primeiros escritores de ficção científica do Brasil, mas também é um autor consagrado mundialmente, elogiado por críticos nos EUA e com contos publicados ao lado de grandes nomes como Arthur C. Clarke, H. G. Wells e Isaac Asimov.
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