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Você estava lá?

Você estava lá?

Meu colega de redação, o engenheiro eletricista Cesar A. K. Grossmann, mais uma vez me enviou uma ótima sugestão sobre um artigo, pontuando que alguns criacionistas norte-americanos estão ensinando as crianças a perguntarem para os professores de ciência “você estava lá?” cada vez que ele mencionar qualquer coisa que ocorreu há milhões ou bilhões de anos.

Coincidentemente eu já vivi essa situação numa menor escala temporal, quando em uma aula afirmei que a descoberta do fogo caracterizou um passo decisivo para a evolução da sociedade humana.

– Então um aluno me perguntou se eu estava lá.

No momento me pareceu uma piada juvenil.  Alguma insinuação não muito sutil sobre a minha idade.

Mudei de ideia depois que li o artigo do “The New Yorker” indicado por Grossmann “WHY THE ONE APPEALING PART OF CREATIONISM IS WRONG” de autoria do pesquisador Lawrence M. Krauss.

Comecei a refletir que talvez, esse tipo de pergunta — “você estava lá?” —  possa realmente ser uma tendência inspirada nos trabalhos de Ken Ham  fundador do Museu da Criação (The Creation Museum) , em Petersburg , Kentucky (USA) tema principal do referido artigo.

Para que o leitor tenha uma ideia do trabalho de Ham basta citar dois pontos controversos de suas manifestações sobre o criacionismo:

1)      A Terra possui cerca de seis mil anos de idade

2)      O Tyrannosaurus rex e outros dinossauros carnívoros eram realmente vegetarianos e que viveram no Jardim do Éden antes da queda de Adão e Eva.

O núcleo do referido artigo gira em torno do debate “Is creationism a viable model of origins in today’s modern scientific era?” (“Criacionismo é um modelo viável sobre as origens da vida na era científica moderna?”), proposto por Ham e realizado no próprio Museu da Criação com a participação do eminente bacharel em ciências e engenheiro mecânico Bill Nye, um dos divulgadores científicos mais populares da mídia americana, aquele que é carinhosamente chamado “The Science Guy”.

No debate Ken Ham defendeu uma divisão da ciência em dois tipos de prática: a “ciência observacional” e a “ciência histórica”.

A tal “ciência observacional”, que ele admite ser “ciência de verdade,” é realizada nos dias de hoje, por meio da observação, testes, ensaios e conclusões — criando-se a partir de sua metodologia todo um corpo de sólidas evidências que a fundamentam.

Nesse tipo de ciência se inclui a química e a física e obviamente suas aplicações tecnológicas.

Já a tal “ciência histórica” onde ele cataloga astronomia, geologia e biologia evolutiva busca falar sobre o passado e, portanto, não se baseia em “fatos” como a anterior, mas apenas em “suposições” por que afinal ninguém estava lá no passado para “testemunhar” o ocorrido, a não ser Jeová (o deus cristão) como está escrito na bíblia.

Achará razoável tal subdivisão apenas quem desconhecer o que é método científico.

Simplesmente não existe essa distinção entre ciência do presente e ciência do passado.

Como já manifestei nessa coluna diversas vezes — a ciência é muito mais do que um simples depósito de fatos.

É uma poderosa ferramenta na busca pelo conhecimento.

É por meio de um rigoroso método que se testa exaustivamente toda a informação antes que esta seja considerada científica; em seu cerne medular está e estará sempre o seu termo chave que é a evidência.

O rigor do método científico oferece garantia de que tal evidência seja sólida, testável o tempo todo, universal, objetiva e impessoal, ou seja, à prova das opiniões, desejos pessoais ou interferências da autoridade ou do poder.

Quando se afirma, por exemplo, que a velocidade da luz é de 299 792 458 km/s é por que esse valor foi medido e medido várias vezes, por vários cientistas e em várias épocas.

Assim, quem olha para o nascer do sol está obviamente testemunhando um evento do passado, pois a luz que enxergamos leva oito minutos em média para chegar até nós.

E esses cálculos são refeitos incontáveis números de vezes, a tal ponto, que eu como cientista não preciso de uma nave espacial para ir até o sol “testemunhar” o evento para aceitar essa evidência como científica.

Quando observamos por meio de telescópios potentes uma estrela distante 1000 anos-luz da Terra, em verdade estamos observando o passado dessa estrela. Estamos observando eventos ocorridos há mil anos.

Essas informações são submetidas exaustivamente a críticas rigorosas na busca por falhas exatamente como é realizado pelos eventos observados nos laboratórios sob o controle dos químicos e físicos.

Então, essa invenção de uma ciência do presente, baseada em evidências e uma ciência do passado, baseada em opiniões — ou histórias que precisamos acreditar — é simplesmente a apresentação de um atestado de ignorância a respeito do método científico.

Como alguém, por um lado, pode aceitar que a meia-vida de decaimento radioativo do potássio-40 é da ordem de bilhões de anos (uma evidência da Física Nuclear) e depois, por outro lado, afirmar que o planeta Terra tem apenas seis mil anos?

E os bilhões de anos de decaimento do potássio-40 registrados nos estratos geológicos terrestres? Despreza-se esse fato?

Aceita-se uma evidência científica, porém descarta-se outra.

Interessante essa dicotomia, não?

No artigo citado, o autor apresenta outras confrontações:

Neutrinos

Existem subpartículas atômicas, chamadas neutrinos , emitidas pelo sol, como subprodutos do processo de fusão nuclear. Não precisamos acreditar que existem os neutrinos,  eles foram detectados por experimentos da Física Moderna.

O prêmio Nobel Ray Davis e seus colegas ao longo de um período de vinte anos observaram a atividade dos neutrinos solares e essas observações foram e estão sendo confirmadas por vários experimentos até os dias de hoje, fornecendo dados valiosíssimos.

Dados esses que fundamentam a explicação da dinâmica solar e que aponta a necessidade de uma compressão sustentada por quase um milhão de anos para que ocorresse a ignição do hidrogênio. Uma evidência matemática.

Não.

Essa evidência é desprezada apesar de se aceitar a da existência dos neutrinos e sua dinâmica na fusão nuclear.

Código genético

A bioquímica mapeou o código genético humano – evidência aceita.

O ser humano apresenta 23 pares de cromossomos. Os símios (grandes macacos) apresentam 24 – evidência aceita.

A previsão de uma relação genética entre os símios e os seres humanos através de um ancestral comum aponta que, ao longo da evolução humana, dois pares de cromossomos do macaco se fundiram para gerar apenas um no ser humano, por essa razão 24 pares se transformaram em 23.

E para o desespero de muitos criacionistas nesse par de cromossomos resultante foi encontrado vestígios dos pares originais presentes em nossos primos macacos. Coisa que a bioquímica já comprovou por meio de experimentos e experimentos repetidos várias vezes, por vários cientistas, em várias ocasiões.

Porém essa evidência é rejeitada.

Será por que vem a corroborar a evolução?

Deriva Continental

A movimentação das placas tectônicas está apoiada em evidências, com medidas precisas realizadas ano a ano.

Usando as equações da física previu-se a posição dos continentes no tempo geológico na ordem de milhões anos. Tais evidências, no entanto são desprezadas.

Porém as mesmas equações quando são usadas para se prever no tempo a posição de peças nas esteiras de linhas de montagem são daí aceitas.

E por aí vai.

Para evitar discussões circulares é importante frisar:

Não existem duas ciências: uma do presente e outra do passado. Isso é apenas um recurso de retórica.

O conceito científico não depende da fé, opinião ou de testemunhos de quem quer que seja para funcionar.

O conceito científico não depende de argumentos de autoridade.

Quem afirmar isso está prestando um desserviço à humanidade e apostando no obscurantismo mais uma vez.

Mesmo respeitando a crença daqueles que me afirmam que a fé move montanhas eu como químico tenho posse de evidências que apontam o funcionamento mais efetivo do TNT e da dinamite.

E em nenhum momento da minha vida profissional foi necessário testemunhar de perto a explosão de uma frente de demolição para então acreditar em seu funcionamento.

E o TNT e a dinamite continuarão explodindo mesmo sem a minha crença, anuência ou testemunho.

Para concluir, vou reforçar o que  já manifestei aqui em diversas oportunidades:

— Todo o ser humano tem o direito de acreditar em um deus, em vários ou em nenhum;

— Além da ciência, a tomada de realidade de cada um pode ser realizada valendo-se do poder do mito, do dogma da religião, do pensamento em filosofia, da crença no senso comum e/ou  a partir da estética da arte.

É a liberdade que deve nortear a escolha que cada um faz do viés pelo qual quer olhar o mundo.

Nunca o exercício do obscurantismo, que pelo uso de uma bela retórica, embaralha conceitos fundamentais tentando invalidar ferramentas indispensáveis para a garantia da sobrevivência de nossa espécie que é o espírito crítico, a lógica e, evidentemente, o bom senso.

-o-

 

[Imagem: Fogo por Gustty]
[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

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