Documentada pela primeira vez em 1981, a epidemia do que hoje conhecemos como HIV começou a aparecer como uma rara infecção pulmonar caracterizada por um sistema imunológico enfraquecido. Durante aquela década, o vírus se alastrou por muito tempo sem o conhecimento de como era transmitido e sem os medicamentos necessários para o tratamento dos infectados.
A comunidade gay foi especialmente afetada e uma trilha de morte percorreu os Estados Unidos.
A Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é o estágio final do HIV e, segundo dados de 2012 da Biblioteca Nacional de Medicina dos EUA, a sexta maior causa de morte no país entre as pessoas com idade de 25 a 44 anos. O vírus causador da Aids é transmitido por transfusões de sangue ou uso de agulhas, contato sexual ou de uma mulher grávida para o filho.
Em um tópico do site Reddit, um usuário pediu que os gays que viveram a epidemia dos anos 80 contassem as suas experiências (“Homens homossexuais que viveram a epidemia de HIV da década de 1980, como foi?”). As histórias são chocantes, assustadoras e de partir o coração. Fizemos uma seleção e apresentamos abaixo alguns dos relatos mais emocionantes dos usuários do site.
1. “walterhpdx”
“Sou um homem gay e passei minha adolescência no auge da crise. Eu não tinha saído [do armário], mas sabia que eu era gay. Na época, eu trabalhava no maior hospital no Alasca, na farmácia. Participamos dos ensaios [clínicos] do AZT, o primeiro medicamento para a Aids. Dos 20 farmacêuticos e 35 técnicos, eu era uma das únicas pessoas que realmente ajudava quando os pacientes que participaram do estudo vinham tomar seus remédios. Isto era para os pacientes que ainda estavam ativos. Tivemos trabalhadores da saúde – enfermeiros e auxiliares – que se recusaram até mesmo a ir nos quartos dessas pessoas. Às vezes eu levantava na hora das refeições para ajudar a passar as bandejas [de remédios].
Este foi provavelmente o pior momento para estar no armário; isso me afetou muito. Eu só fui assumir quando tinha 22 anos e foi nessa época que eu fui ao meu primeiro encontro com um cara. Fico feliz em dizer que seis meses depois disso, eu conheci o homem dos meus sonhos, e nós ainda estamos juntos. E que o vírus nos dias de hoje é muito mais gerenciável”.
2. “Griffie”
“Eu perdi todos os meus amigos da época; ia a um funeral a cada 12, 16 dias. Não havia testes ou tratamentos disponíveis. Você não sabia que você tinha [o HIV] até que começasse a ficar doente e, nesse ponto, você só tinha algumas semanas ou meses antes de morrer.
Não havia precauções. Ninguém sabia o que causava [a doença]. Inicialmente pensava-se que era de usar poppers [nitritos usados recreativamente, especialmente na preparação para o sexo]. Depois, não se tinha certeza de como era transmitida. Contato casual? Saliva? Lágrimas? Suor? Ninguém sabia. As pessoas começaram a manter listas de quem tinha ficado doente e com quem eles tinham dormido. Foi definitivamente confuso, assustador. Foi muito difícil de ver tantas pessoas morrem em um período de tempo tão curto”.
3. “Silver_Valley”
“À medida que a epidemia se desenvolvia, o medo e o estigma ficaram associados a homens gays (e homens que fazem sexo com homens), e não apenas à doença. Havia uma discriminação horrível. Os homens e as famílias foram expulsos de suas casas. Crianças (ou adolescentes que recebiam transfusões) eram recusados na escola. Muitos não conseguiam receber atendimentos médico-hospitalares rotineiros, serem admitidos em hospitais ou ter atendimento odontológico. Enfermeiros não os atendiam. Funerárias não os recebiam ou enterravam. Restaurantes não queriam atendê-los. Abraços e cumprimentos se tornaram um ato político e muitas vezes passavam por heroísmo.
Em um dos meus primeiros casos de apelação [na corte de julgamentos], estava representando um homem que tinha hepatite C e trabalhava em uma escola pública do distrito rural de Nova York como custodiante. Ele não era permitido nas dependências da escola enquanto estivessem acontecendo aulas, nem era autorizado a utilizar as fontes de água públicas. Nós tivemos uma grande decisão [à favor do homem], a respeito do fato que os empregadores precisam dar atenção à ciência real, não ao medo, desconfiança ou preconceito e este foi um precedente para casos relacionados à Aids”.
4. “VillageGuy”
“Eu sou um homem gay de 62 anos de idade. Eu felizmente passei pela epidemia que começou no início dos anos 80 e se estendeu até meados dos anos 90. Você pergunta como foi? Eu não sei se eu posso nem começar a dizer de quantas maneiras a AIDS afetou a minha vida, embora eu nunca tenha contraído o vírus. Até o início dos anos 80, eu tinha o que considero um círculo de amigos e conhecidos realmente grande e uma vez que a epidemia começou a bater, não era incomum descobrir que 3, 4 ou mais pessoas que você conheceu morreram a cada mês.
Montamos grupos de apoio informais e formais para cuidar de nossos amigos que ficavam doentes. Nós os alimentávamos quando precisavam comer. Trocávamos suas roupas. Dávamos banhos neles. Nós atuávamos como intermediários com as famílias que “estavam preocupadas” com seus filhos, sobrinhos, irmãos, etc, mas não davam uma mão para ajudar, porque a AIDS era, você sabe, nojenta. Depois que eles faleciam, havia funerais para planejar sem ter um tempo real para se lamentar porque, quando morria, você era necessário em outro lugar para começar o processo todo de novo.
Eu mantive um livro de memórias/álbum de fotos de todos que eu conhecia que morreram de AIDS. Para dizer o mínimo, ele é muito grande. Quem eram esses caras? Essas eram as pessoas com quem eu tinha planejado envelhecer. Eles eram a família que eu tinha criado e com quem queria passar o resto da minha vida, o tempo que fosse humanamente possível. Mas quando estava no final dos meus 40 anos, cada um deles tinha ido embora, exceto por dois queridos amigos meus. Tudo o que nos resta desses dias somos uns aos outros, as nossas memórias e fotografias. Contudo, espero que esta declaração não pareça algo que inspira pena. Estou em forma, saudável, ativo e você sabe o que mais? Aproveito cada dia da minha vida. Eu aproveito porque a maioria dos meus amigos não pode. À minha maneira pessoal, eu quero honrar suas vidas, vivendo e desfrutando da minha.
Eu quero acrescentar mais uma coisa. Há um grupo de pessoas que até hoje recebe pouco crédito por todo o trabalho duro que fizeram durante a crise: a comunidade lésbica. Elas não foram diretamente afetadas pela propagação do vírus, mas muitas entraram na onda logo no início, deram tudo o que tinham para ajudar onde quer que pudessem e, em muitos casos, lideraram o caminho quando as coisas ficaram realmente ruins, do meio para o final dos anos 80. Todos nós devemos ser eternamente gratos a elas pelo que fizeram.
Obrigado por fazer esta pergunta. Se os caras mais jovens pudessem conhecer os horrores que vimos, eles nunca seria tão arrogantes quando o assunto é ter relações sexuais sem preservativo. Não é um julgamento. É apenas a voz da experiência. Paz”.
5. “arocklegend”
“Um monte de gente já comentou aqui sobre a experiência de viver como homens gays durante esse tempo: a confusão, o medo, a raiva e a culpa da sobrevivência. Mas o fato de ouvirmos muito pouco sobre o papel das lésbicas durante esse tempo é uma injustiça que permanece não divulgada e sem solução.
Meu testemunho é limitado ao que eu vi em primeira mão, mas acredito que, se as suas contribuições e experiências forem plenamente compreendidas em retrospecto, as lésbicas que ajudaram os homens gays naquela época seriam reconhecidas como tão heroicas quanto soldados nas linhas de frente de qualquer guerra.
Uma reivindicação como essa requer um contexto sólido, algo que acho que não posso dar neste post: é uma das minhas ambições conseguir fazer isso na minha vida. Mas o que posso dizer agora é que estas mulheres enfrentaram aquela situação caótica, andaram diretamente para o fogo, e não precisavam fazer isso. E elas o fizeram mesmo quando alguns dos homens gays que de quem cuidaram as tratavam com maldade, escárnio e desprezo.
Na época, não era de todo incomum que os homens gays reprimissem o riso quando lésbicas com porte masculino entravam nos bares com seus macacões, flanelas e cabelos curtos. Grande parte do tempo, eram provações ocasionais que elas levaram na esportiva. Mas também poderiam vir misturadas com acidez, especialmente quando as lésbicas começaram a gravitar em direção a bares que até então atendiam em grande parte homens.
Quando a crise de Aids estourou, foram muitas dessas mesmas mulheres que iam direto de seus empregos diários para serem cuidadoras durante a noite. Como a maioria delas não tinha diploma de medicina, geralmente ficavam com as tarefas mais desagradáveis: limpar vômito e fezes, limpar as casas e apartamentos negligenciados durante semanas e meses. Mas não ser diretamente responsáveis pelo atendimento médico também fazia delas os alvos mais convenientes para a fúria e raiva devastadoras que estes homens sentiam – muitos do quais tinham sido abandonados por sua própria família e amigos.
Estas mulheres enfrentaram o problema de frente. Elas vieram em auxílio dos homens gays, mesmo quando não estava claro o quão facilmente o vírus podia ser transmitido. Transmissão por seringas ainda era uma preocupação, então elas muitas vezes usavam duas ou três camadas de luvas de látex para se proteger, mas, mais do que uma vez as vi, em sua pressa e frustração, dispensar as luvas para que pudessem checar a febre, ou para segurar uma mão que estava pendurada com indiferença na borda de uma cama cujos lençóis elas tinham acabado de lavar.
Elas deram ajuda, conforto e atendimento médico aos homens que definhavam em hospícios, homens que já tinham perdido os seus amantes e amigos para a doença e passaram seus últimos meses em agonia. Eles tinham sido abandonados por suas próprias famílias, e se não fosse pelas lésbicas – muitas, se não a maioria delas, voluntárias. E quando não havia nada mais que a medicina pudesse fazer por eles e seus pulmões começavam a encher de líquido, eram muitas vezes essas mesmas mulheres que tinham que administrar morfina suficiente para libertá-los, que lhes era dada pelo médico que tinha saído da sala e voltaria 15 minutos mais tarde para assinar o certificado [de óbito] (uma prática comum na época).
Eu conheci uma mulher nessa época que estava começando a ganhar dinheiro na construção [civil]. Mas, desde o início da crise da Aids, ela havia abandonado sua carreira para estudar enfermagem e estava perto de ganhar seu diploma quando saíamos juntos. Ela gostava muito de beber e, felizmente, eu também. Estávamos bem acabados em um bar uma vez quando alguém sussurrou um comentário bastante afável, mas ainda assim nem um pouco bem-vindo para ela. Dedos médios foram trocados, e depois, furioso e indignado, perguntei-lhe: ‘Por que você fez isso? Por que você foi abandonar a sua carreira para cuidar desses idiotas que ainda assim não te respeitam?’.
Ela me lançou um olhar surpreendentemente grave, segurou-o e disse: ‘Querido, porque ninguém mais vai fazer isso’. Lembro de me sentir envergonhado depois disso, porque a minha fúria e indignação não estavam limpando sangue e vômito do chão; não fariam o que precisava ser feito.
O HIV matou meus amigos, tomou meu amante de mim e rasgou minha vida. Durante esse tempo, eu fiz o que pude. Mas nada do que eu fiz então ou já fui convidado a fazer na minha vida me coloca em qualquer lugar perto o exemplo dado pelas lésbicas que eu conhecia nos anos 80 e 90. Eu me senti na obrigação de lembrar o que elas fizeram e garantir que outras pessoas se lembrem delas também”.
Para quem quiser saber mais sobre o assunto, dois filmes recentes tratam do drama vivido pelos infectados nessa era de pânico: o indicado ao Oscar em 2014 “Clube de Compras Dallas” (que deu a estatueta de Melhor Ator a Matthew McConaughey e a de Melhor Ator Coadjuvante a Jared Leto), e o filme para TV produzido pela HBO “The Normal Heart” (que recebeu 49 indicações e levou 12 prêmios, entre eles o de Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Filme para TV, com Matt Bomer). [Reddit, Health Line, Huffington Post, Super Interessante]