Desvendar como a vida pode ter se originado no nosso planeta é um dos desafios dos biólogos há um longo tempo. Os maiores avanços aconteceram quando se descobriu que a química “orgânica” não era exclusividade de seres vivos.
Outro grande avanço foi a descoberta que moléculas orgânicas mais complexas poderiam se originar a partir de processos que acontecem na atmosfera primitiva da Terra, bem como em cometas e asteroides – estas duas últimas teorias corroboradas com a descoberta de aminoácidos simples no espaço.
Falta ainda entender a passagem da química orgânica para a vida, ou seja, como foi que as peças que temos se juntaram para formar uma célula viva, mesmo extremamente primitiva: uma membrana, uma molécula autorreplicante e um metabolismo.
O desafio da replicação
Uma das hipóteses é a de que a vida se originou de algum tipo de mundo do RNA, um mundo em que moléculas simples de RNA formaram as primeiras unidades autorreplicantes, o primeiro passo para o DNA e todas as possibilidades.
Esta passagem ficou mais próxima com a descoberta do professor Geral F. Joyce, do Departamento de Química e Biologia Molecular e da Célula do TSRI, e também diretor do Genomics Institute, da Novartis Research Foundation.
O professor Joyce estava lidando com o problema da quiralidade: moléculas orgânicas, em alguns casos, podem se organizar de duas formas diferentes, chamados por simplicidade de direita e esquerda, dependendo da direção para a qual elas desviam a luz polarizada (kheir, a raiz de quiral, é uma palavra grega que significa mão).
A quiralidade é importante por que moléculas com quiralidade oposta geralmente não reagem. Toda a vida está organizada em cima de moléculas com a quiralidade direita (o RNA com esta quiralidade é chamado de D-RNA).
A grande sacada do professor Joyce é que uma molécula de D-RNA poderia fazer uma cópia do seu oposto quiral, L-RNA, e depois este L-RNA faria uma cópia D-RNA. Como duas inversões em série, ou coisa do tipo. Isto não acontece nas células modernas. O D-RNA faz cópias D-RNA. Para que isso fosse possível, a enzima de cópia de RNA primitiva, ribozima, teria que ser mais genérica.
Imaginada a solução, a grande questão seguinte é: será possível uma ribozima que trabalha com quiralidade cruzada? A resposta veio através de uma técnica chamada “evolução de tubo de ensaio”, do colega do professor Joyce, Jonathan T. Sczepanski.
Da sopa orgânica à vida
O professor Sczepanski começou com uma sopa de cerca de um quatrilhão (10^15) moléculas curtas de RNA, uma seleção basicamente aleatória, todas com quiralidade direita. “Ajeitamos as coisas de forma que as moléculas que poderiam catalizar uma reação com L-RNA seriam separadas da solução e amplificadas”, conta ele.
Depois de 10 interações, foi encontrada uma ribozima que era uma forte candidata. Ela foi expandida, passada por mais 6 iterações, e limpa de nucleotídeos desnecessários. O resultado foi uma ribozima de 83 nucleotídeos, que podia ajudar a replicação de uma L-RNA um milhão de vezes mais rápido do que sem a assistência da enzima.
A equipe conseguiu mostrar que a nova ribozima poderia funcionar sem se atrapalhar mesmo que nucleotídeos de RNA com a mesma quiralidade estivessem presentes. No último teste, a nova ribozima conseguiu montar os 11 segmentos de uma molécula de RNA, fazendo a cópia completa de sua contraparte quiral.
A equipe está agora trabalhando para fazer com que a ribozima de quiralidade direita (e sua parceira quiral) passe pelos mesmos passos de seleção, de forma que consiga assistir uma replicação completa de RNA, sem dependências da sequência de nucleotídeos. Seria a enzima replicadora de RNA genérica que eles estão procurando, capaz de transformar a sopa orgânica primordial em uma vasta biosfera.
“O que queremos fazer no fim é soltar esta enzima – no laboratório, é claro, não na natureza – para vê-la começar a se replicar e evoluir, para ver o que sai”, diz Joyce.
O trabalho foi publicado na revista Nature de 30 de Outubro de 2014, e seu título é “A Cross-chiral RNA Polymerase Ribozyme“. [PhysORG]