Fragmentos de um manuscrito do livro Alcorão encontrados na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, seriam uma das mais antigas cópias existentes do texto islâmico. O antigo documento, escrito em pele de ovelha ou de cabra, esteve por quase um século na biblioteca universitária sem que estudiosos identificassem o seu significado.
Isto até que Alba Fedeli, doutoranda da Universidade, se encantou pela caligrafia e notou que duas de suas páginas pareciam ser de uma outra edição, mais nova, do livro Alcorão. Como os textos não eram compatíveis, a Universidade enviou as páginas para testes de radiocarbono.
Nesta semana, pesquisadores da Universidade de Birmingham revelaram a descoberta surpreendente de que os fragmentos parecem ser parte do que poderia ser a cópia mais antiga do mundo do Alcorão. Estudiosos dizem que ela pode ter sido transcrita por um contemporâneo do profeta Maomé. “Nós ficamos maravilhados, perplexos”, conta David Thomas, professor de Cristianismo e Islamismo da instituição, ao jornal “The New York Times”.
Influência na religião
As páginas antigas do manuscrito, estimadas em pelo menos 1.370 anos de idade, oferecem um momento de união e esclarecimento para os 1,6 bilhão de muçulmanos do mundo. Segundo Thomas, este material oferece pistas tentadoras para ajudar a resolver uma disputa acadêmica sobre se o texto sagrado foi realmente escrito na época do profeta ou compilado anos mais tarde, após ter sido transmitido de boca em boca. A descoberta também ofereceu um momento alegre para uma fé que tem lutado com divisões internas e pressões externas.
Os muçulmanos acreditam que Maomé recebeu as revelações que formam o livro Alcorão, a escritura do Islã, entre 610 e 632, o ano de sua morte. Os testes de radiocarbono indicaram, com uma probabilidade de mais de 94%, que o pergaminho data de 568 a 645.
Segundo o professor, durante a época de Maomé, a mensagem divina não era compilada no formato de livro em que aparece hoje. Em vez disso, as palavras que se acredita serem de Deus, ditas a Maomé, foram preservadas nas “memórias dos homens” e recitadas. Parte delas foram escritas em pergaminhos, pedras, folhas de palmeira e nas omoplatas de camelos.
Tom Holland, o autor de “In the Shadow of the Sword”, que traça as origens do Islã, disse que a descoberta em Birmingham reforçou conclusões acadêmicas de que o Alcorão atingiu algo próximo a sua forma atual durante a vida de Maomé. Ele disse que os fragmentos não resolvem as questões controversas de onde, como e por que o manuscrito foi compilado, ou como suas diversas suras, ou capítulos, vieram a ser combinados em um único volume.
Composta por duas folhas de pergaminho, o manuscrito em Birmingham contém partes do que são agora os capítulos 18 a 20. Durante anos, o documento tinha sido erroneamente encadernado com folhas de um manuscrito similar.
Controvérsias no fragmento do livro alcorão?
Saud al-Sarhan, diretor de pesquisa do Centro Rei Faisal para Pesquisa e Estudos Islâmicos em Riad, na Arábia Saudita, disse duvidar que o manuscrito recém-desvendado seja tão antigo quanto os pesquisadores afirmam, notando que a sua escrita árabe incluía pontos e capítulos separados – recursos que foram introduzidos mais tarde. Ele também disse que datar a pele em que o texto foi escrito não prova quando ele foi escrito, já que peles de manuscritos eram por vezes lavadas e reutilizadas mais tarde.
Thomas disse que o texto das duas páginas estudadas pela pesquisadora, que recebeu seu doutorado neste mês, correspondem rigorosamente com o do Alcorão moderno. Contudo, ele advertiu que o manuscrito era apenas uma pequena porção do Alcorão e, portanto, não oferecia uma prova conclusiva.
Omid Safi, diretor do Centro de Estudos Islâmicos de Duke e autor do livro “Memories of Muhammad: Why the Prophet Matters”, disse que a descoberta do manuscrito fornece “mais evidências para a posição da tradição islâmica clássica que o livro Alcorão como existe hoje é um documento do século VII”.
Técnica de datação
O manuscrito está em Hijazi, uma forma primitiva de escrita árabe, e os pesquisadores disseram que os fragmentos poderiam estar entre as evidências textuais mais antigas do livro sagrado que sobreviveram. Um manuscrito da biblioteca da Universidade de Tübingen, na Alemanha, foi encontrado no ano passado e originaria do século VII, de 20 a 40 anos após a morte do profeta. Fragmentos dos textos de Tübingen foram testados com radiocarbono por um laboratório em Zurique e determinou-se, com 95% de certeza, que seria de 649 e 675, tornando o texto de Birmingham alguns anos mais velho.
A datação por radiocarbono mede os níveis de uma forma mais pesada de carbono, tal como aparece na atmosfera ao longo do tempo e se torna parte das plantas e, mais tarde, dos animais que as comem. Neste caso, o laboratório de Oxford mediu a idade da ovelha ou cabra cuja pele foi transformada em pergaminho.
Jeff Speakman, diretor do Centro de Estudos Isotópicos Aplicados da Universidade da Geórgia, que não esteve envolvido na pesquisa, disse que as datas e a precisão pareciam razoáveis. “Oxford é um dos melhores laboratórios de radiocarbono no mundo”, garante, acrescentando que datar artefatos da época em questão é muitas vezes mais preciso do que o fazer com material dos últimos cem anos.
Graham Bench, diretor do Centro para Espectrometria de Massa com Aceleradores no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, nos Estados Unidos, concordou e acrescentou a mesma ressalva apontada por Saud al-Sarhan: “Você está datando o pergaminho, não a tinta. Você está fazendo a suposição de que o pergaminho ou velino foi usado nos anos em que foi feito, o que provavelmente é uma suposição razoável, mas não é inquestionável”.
Sarhan disse que há uma espécie de competição entre os pesquisadores agora para encontrar o mais antigo exemplar do Alcorão, mas que a descoberta na Grã-Bretanha teria pouco efeito sobre as crenças das pessoas, uma vez que os muçulmanos acreditam que “o livro Alcorão foi alterado desde o profeta Maomé”.
Exposto ao público
A previsão é de que o manuscrito encontrado em Birmingham seja colocado em exposição pública.
Os fragmentos eram parte de uma coleção de mais de 3 mil documentos do Oriente Médio compilados em 1920 por Alphonse Mingana, um teólogo e historiador que nasceu no que hoje é o Iraque. Suas expedições de coleta de documentos ao Oriente Médio foram financiadas por Edward Cadbury, membro de uma famosa família de fabricantes de chocolate.
Em Birmingham, que tem uma grande população muçulmana, a descoberta do manuscrito foi recebida com alegria. Mohammad Afzal, presidente da Mesquita Central da cidade, disse que terá acesso ao manuscrito. “Tenho a honra de ver o manuscrito, que é único”, disse. “Ele remonta aos primeiros estágios do Islã. Todos os muçulmanos no mundo adorariam ver este manuscrito”.
Muhammad Isa Waley, curador da seção persa e turca da Biblioteca Britânica, em Londres, disse que era uma descoberta “excitante”. “Nós sabemos agora que estes dois fólios, em uma bela e surpreendentemente legível escrita Hijazi, quase certamente datam do tempo dos três primeiros califas”, afirma. Ele acrescentou que, de acordo com relatos clássicos, foi na época do terceiro califa, Uthman ibn Affan, que o texto do Alcorão foi compilado e as suras organizadas na ordem atual.
Thomas espera que a descoberta possa fazer com que Birmingham vire um destino para muçulmanos e estudiosos. Para ele, no entanto, os fiéis não precisam de um texto para se sentir perto do livro Alcorão porque, para muitos, ele é essencialmente uma experiência oral a ser recitada, memorizada e reverenciada. [New York Times, LiveScience]