O que pode ser pior que a ignorância?

Por , em 16.02.2014

O que pode ser pior que a ignorância?

 

Na esteira do artigo da semana passada, no qual abordamos o tema metacognição surgiu a questão:

— Se metacognição é o conhecimento e o controle do próprio conhecimento, qual seria o efeito da ignorância da própria ignorância?

Com intuito de responder essa questão vou me referir à pesquisa de David Dunning, um psicólogo da Universidade de Cornell, realizada em conjunto com Justin Kruger da Universidade de Nova York já noticiada aqui no Hypescience.

A pesquisa fundamentou-se na realização de diversos testes dentro de determinadas áreas das habilidades humanas, tais como raciocínio lógico, inteligência emocional, jogos de estratégia, sagacidade no humor, etc. seguido de uma entrevista.

Nessa entrevista era solicitada a opinião de cada participante sobre seu próprio desempenho nos testes.

Os resultados foram esclarecedores.

Os participantes da pesquisa que tiraram as mais baixas pontuações superestimaram seus resultados em 100% das entrevistas.

E quanto pior o resultado quantitativo em raciocínio lógico, inteligência emocional, humor ou mesmo habilidades em jogar xadrez, por exemplo, maior foi a diferença entre a sua real pontuação e a sua estimativa arrogada na entrevista.

Ficou patente que a incompetência priva as pessoas da capacidade de reconhecer sua própria incompetência.

Tal limitação pode ser a principal responsável pelo descompasso nos relacionamentos interpessoais e no funcionamento da sociedade como um todo.

Com mais de uma década de pesquisa os resultados demonstraram que os seres humanos acham “intrinsecamente difícil ter uma noção do que não sabem”.

O pior em tudo isso, é que não se trata apenas de otimismo ou autoconfiança.

Os pesquisadores descobriram uma total falta de habilidade em autoavaliar-se. Um bloqueio nessa parte do autoconhecimento individual que implica na ignorância sobre a extensão de suas reais habilidades e na confusão entre a imagem que se tem de si mesmo e a realidade de suas próprias competências (ou incompetências).

Mesmo quando os pesquisadores ofereceram aos participantes uma recompensa de US$ 100 para aqueles que classificassem seu desempenho com a maior precisão, os resultados foram praticamente os mesmos.

“Eles realmente estavam tentando ser honestos e imparciais. Percebia-se ali uma real incapacidade de se avaliar o próprio conhecimento bem como seus próprios limites. Nisso podemos apontar a causa de muitos dos problemas da sociedade, como por exemplo, a própria negação das alterações climáticas. Tal negação passa pela sedimentação de uma opinião desinformada e desatrelada da realidade, e o que é pior, aliada à inconsciência dessa desinformação” — afirmou Dunning.

E para agravar o caso, ficou evidente também que pessoas que não são talentosas em uma determinada área são incapazes de reconhecer esse talento nos outros.

O que é mais uma das obviedades que a psicologia cognitiva está nos esfregando na cara.

Quanto mais ignorante for a pessoa, maior a valorização que ela dá a si mesmo e menor a valorização que ela dá aos outros.

De fato, é um resultado que não surpreende um bom observador da conduta humana desde que se tem falado em ignorância e arrogância — parecem que são características indissociáveis e com os resultados mais nefastos que podemos imaginar na conduta humana.

O que me leva a concluir, sobre a nossa questão base:

Pior que a ignorância — só mesmo a ilusão do conhecimento, que invariavelmente a acompanha.

Essa terrível ilusão que além de levar o indivíduo ao erro também o aprisiona na própria ignorância, impedindo-o de buscar pelo conhecimento.

Afinal, ninguém precisa encher um cântaro quando se acredita que ele está completamente cheio.

 

-o-

[Imagem: Vase de Juan Tello]

[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

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Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.

25 comentários

  • Fernando Oleiro:

    Mas há pessoas com “conhecimento perigoso”, que podem enlouqecer. Neste caso, é mais vantajoso ser mais simples e aprender ou conhecer aquilo que nos pode ser mais util. Não é preciso saber a tabuada se não precisar fazer contas e calculos. E muito complexo decidir ou distinguir o que é certo e errado nos limites do conhecimento. A realidade já não é o que é, é o que alguns sabem, querem e podem que ela seja. Sistemas de educação, avaliação e medição de valores diferentes e incompativeis.

  • Fernando Oleiro:

    Não há pessoas ignorantes, pode haver ideias, pensamentos, expressões ou práticas erradas, naquela cultura e naquele tempo em relação a outro. A ignorância faz parte do processo de aprendizagem e evolução do conhecimento, não tem nada de mais, existe e funciona ou adapta-se. Está ligado à cultura, ao meio e só se pode avaliar e medir quando há grandes mudanças, ambientais, espaciais, especiais e temporais. Faz parte da evolução da espécie, nas sociedades desenvolvidas, complexas é que se agudiza

    • Cesar Grossmann:

      Claro que há pessoas ignorantes. Ignorar é não saber, todo mundo é ignorante em maior ou menor grau.

      O ruim é o sujeito ser muito ignorante e achar que não é, ou achar que é pouco ignorante. Ele age achando que sabe tudo que é preciso saber, quando detalhes cruciais e importantes escapam ao conhecimento dele, detalhes que ele nunca vai procurar saber ou mesmo acreditar que existem porque ele acredita que não há nada que ele não saiba…

  • Ronaldo Rocha:

    A ignorância “cega” o indivíduo a tal ponto que sua autopercepção torna-se/é incapaz de avaliar de maneira racional e realista a sua verdadeira capacidade em determinada área ou assunto. O que nos faz rever as razões que levam pessoas preconceituosas a manter sua índole e opinião sobre determinado tema imutável, pois, seguindo o pressuposto de que a “falta de inteligência” inibe a autocrítica, manter seus preceitos é melhor maneira de lidar com a situação, mesmo em tempos onde tais questões…

  • Fernando Oleiro:

    Agradeço que revejam a definição e conceito de ignorancia no espaço e no tempo se não ainda se arriscam a ser mais igorantes que outros em alguma matéria aqui e agora. O conhecimento e a sabedoria ocupam lugar, espaço de memória e pode ser uma vantagem evolutiva e competitiva ser ignorante em alguma matéria ou assunto, pode dar lugar à especialidade e profundidade mas també pode habituar à comodidade e conformidade ou a não evoluir. Ela devia ser avaliada e medida,muito,pouco, mais,menos,grande

  • CWashington:

    Seria bem interessante pesquisar a forma como o revestimento de algum tipo de autoridade deixa a pessoa muito mais segura e arrogante em torno das próprias certezas. Por mais racional que ela seja, se detém alguma autoridade, se sente com um maior direito de impor sua opinião. E o mais incrível, a pessoa realmente acredita mais em si. O poder seduz!

  • Cleison Maçaneiro:

    Eu não sei, mas tenho fortes suspeitas que esse comportamento é o resultado de anos e mais anos de influência da religião na cultura e no comportamento humanos.

    “Eu não preciso me avaliar. deus me ama bem do jeitinho que eu sou.”

    Para provar isso é fácil, basta averiguar qual é a relação existente entre o
    grau de ignorância e religiosidade.
    Posso apostar que, se posto em gráfico, ficam quase sobrepostos.

    Essa pesquisa já poderia ter coletado essas informações.

    • Ronaldo Rocha:

      No entanto isto levanta uma questão um tanto quanto relevante: as pessoas são ignorantes por influência da religião ou são religiosas por serem ignorantes? Fica a dúvida.

  • Guilherme Ferreira:

    E voltamos a necessidade da humildade para obtenção do (auto)conhecimento.

    “Só sei que nada sei.”

    • Fernando Oleiro:

      Esforçar-se por aprender a fazer evoluir palavras, frases, conceitos, ideias, tradições, ditados e até princípios para deduções mais consistentes, úteis actualizadas, no seu meio ou espaço e no seu tempo, na busca pela covivencia e convergencia. “só sei que nada sei” por “reconheço que pouco sei sobre esta matéria, aqui e agora”.

  • Munhoz:

    Fantástico este artigo, obrigado por compartilhar Mustafá!

  • Fobias Fobos:

    Vemos que o ignorante se protege blindando a si mesmo, ao demonstrar forte convicção do seu próprio obscurantismo; utiliza a própria ignorância como uma couraça, inconscientemente talvez, como forma de não se ver diminuído diante da sociedade.
    Este pode ser o principal método de exploração e dominação em massa das populações de todo o mundo, em especial no que diz respeito a política e ao consumo.
    Assim, o ignorante mantém um sistema que sobrevive da exploração da própria ignorância humana.

  • Giuliano Costa:

    Mas isso não cai num problema filosófico de que todos somos ignorantes em algum nível? Exemplo, se eu voltasse ao passado e fizesse um teste referente a um tema sobre o qual hoje em dia temos uma perspectiva diferente da época. A minha resposta certa ou errada, estaria errada para o nosso tempo atual… Mesmo que na época pessoas acertassem tal teste com conhecimento contextualizado no seu presente. Só que, para nós, hoje estaria errado…

    • Cesar Grossmann:

      Giuliano, a diferença fica entre quem realmente sabe e quem apenas repete o conhecimento ensinado pelos outros. Um exemplo, os alunos em geral, no Brasil, detestam que alguém faça perguntas ao professor. Todos querem que o professor passe o mínimo de matéria, para terem o mínimo a decorar, e possam passar de ano com nota boa. E só. Mas eles saem SABENDO alguma coisa? O Richard Feynman esteve no Brasil e diagnosticou bem este problema dos papagaios tupiniquins…

      Voltando ao teu exemplo, se você viajasse ao passado, e desse respostas diferentes, mas pudesse justificar as mesmas, explicar como se pode chegar a estas respostas diferentes, você provavelmente revolucionaria o conhecimento do passado.

    • Giuliano Costa:

      Talvez eu não tenha me feito entender.
      Na verdade eu não quis dizer que eu levaria respostas do meu tempo (presente) para o passado. Quis dizer que responderia com a base de conhecimento do passado. Desta forma, naquele tempo, talvez, a resposta estivesse correta, porém com a nossa base de conhecimento atual, a mesma resposta dada no passado estaria errada no agora.
      Desse modo, todos somos ignorantes. Só depende da perspectiva.

    • Cesar Grossmann:

      Eu não concordo que o conhecimento seja relativo. A ciência acumula fatos e conhecimento, o que sabemos hoje não é apenas diferente do que sabíamos algum tempo atrás, mas é mais do que sabíamos.

      Compare as brincadeiras que os gregos faziam com a eletricidade estática e toda a gama de máquinas e dispositivos que hoje nós temos que usam a eletricidade.

      Para chegar ao que temos hoje não basta pensar diferente, é preciso ter mais fatos e mais conhecimento.

      Compare o atomismo grego com a física de partículas moderna.

  • Rockson Pra:

    a arrogância e o orgulho antecede a decadência.

  • Rafael Ramos:

    Aristóteles já dizia sabiamente: “Só sei que nada sei.” E com essa filosofia simplesmente “destruiu” todos aqueles que à sua época diziam ser “sábios” e donos da verdade absoluta. Alguma coincidência com os dias de hoje? A maioria dos “comentários” das redes sociais vêm comprovar tal pesquisa… Humilde não é aquele que abaixa a cabeça para tudo e todos, mas sim o que percebe na própria ignorância o início da sapiência.

    • Cesar Grossmann:

      Na verdade foi Sócrates (o “avô” filosófico de Aristóteles) que dizia isto, e ele costumava “incomodar” as pessoas para ver o que elas realmente sabiam sobre o que diziam saber. A metodologia dele recebeu o nome de “maiêutica”, e Sócrates se dizia um “parteiro de ideias” (daí o nome). Curiosamente, a mãe de Sócrates era uma parteira.

      Aristóteles era discípulo de Platão que, por sua vez, foi discípulo de Sócrates. Esta tríade de filósofos até hoje nos ilumina e molda nosso pensamento com suas ideias e perguntas.

    • Fernando Oleiro:

      Esforçar-se por aprender a fazer evoluir palavras, frases, conceitos, ideias, tradições, ditados e até princípios para deduções mais consistentes, úteis actualizadas, no seu meio ou espaço e no seu tempo, na busca pela covivencia e convergencia. “só sei que nada sei” por “reconheço que pouco sei sobre esta matéria, aqui e agora”. Muita humildade e ignorancia, sozinhos, aqui e agora, só podem servir para muito pouco e precisam dos outros, subjectivo e relativo, tudo está ligado no espaço tempo.

  • Eglitz:

    “Quanto mais ignorante for a pessoa, maior a valorização que ela dá a si mesmo e menor a valorização que ela dá aos outros.”
    Isso trás um pouco de temor e incertezas quanto ao futuro, analisando o que vemos hoje no âmbito dos relacionamentos humanos.

  • Marcelo Ribeiro:

    Quanto mais burro se é, mais inteligente se acha.

    • Cesar Grossmann:

      Ou então “tão ignorante que não consegue perceber o alcance da própria ignorância”.

      Como aquela mulher que desfigurou o “Ecce Homo”, a Cecilia Gimenez, e que saiu achando que tinha “restaurado” a pintura…

    • Cesar Grossmann:

      Considerando que uma característica comum dos que são ignorantes mas se acham muito entendidos é não reconhecer o conhecimento dos outros, será que uma maneira de evitar cair nesta armadilha não seria a de tentar encontrar, nos outros, o mesmo conhecimento, ou até mesmo mais conhecimento?

      Seria este o antídoto para a ignorância que se acha sábia?

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