Você pode ter uma mutação brasileira que aumenta o risco de câncer
Sua família é cheia de casos de câncer? A minha tem alguns. Apesar de eu ter apenas 26 anos, meu médico já me avisou que preciso fazer certos exames regulares a partir dos 35, no mais tardar.
Se a doença parece até uma maldição para você, saiba que essa percepção não está tão errada assim. Existe um número surpreendentemente grande de casos de câncer no Brasil, mas a causa não é sobrenatural.
Centenas de milhares de brasileiros têm uma mutação genética que compromete a nossa capacidade de resistir ao câncer. O problema fica no gene p53. Essa mutaçãozinha irritante já foi responsável por várias mortes, como a do ex-vice-presidente José Alencar.
Risco de câncer: Tudo gira em torno do p53
O p53 é o gene mais importante relacionado ao câncer. Foi descoberto em 1979 por David Lane, que trabalha no Imperial Cancer Research Fund, em Londres, e ao mesmo tempo por três outros grupos de trabalho independentes nos EUA e na França.
Quando funciona normalmente, o p53 é um supressor de tumor. Seu trabalho é se certificar de que nossas células se dividam sem cometer erros perigosos. Assim, se ele nota DNA danificado, o p53 impede a divisão celular e envia uma “equipe de reparo”. Se o dano é irreparável, o p53 coloca a célula em um estado no qual não pode se dividir novamente ou a instrui a “cometer suicídio” para que o problema não saia do controle.
Em uma vida média, uma pessoa passa por cerca de 10.000 trilhões de divisões celulares. Leva apenas uma célula danificada para iniciar um tumor.
Assim, é fácil entender por que o p53 é tão importante. Lane o apelidou de “guardião do genoma”. O gene é desativado por uma mutação ou algum outro mecanismo em quase todos os casos de câncer humano.
Síndrome de Li-Fraumeni
O p53 pode ser danificado espontaneamente, o que por sua vez pode aumentar o risco de câncer. O que acontece com muitos brasileiros, no entanto, é já nascer com o p53 corrompido.
As pessoas com Síndrome de Li-Fraumeni são particularmente propensas a sarcomas dos tecidos moles e dos ossos, cânceres do cérebro e da mama, leucemias e carcinomas das glândulas suprarrenais. Elas costumam desenvolver câncer em uma idade jovem.
Até o início dos anos 2000, quando a brasileira Maria Isabel Achatz começou a atender pacientes em sua clínica de genética em São Paulo, pensava-se que a síndrome era muito rara.
No entanto, ela encontrou muitas pessoas que já tinham sofrido vários episódios de câncer, às vezes começando na infância, e seus tumores eram típicos dos mais comumente vistos em pessoas com síndrome de Li-Fraumeni. Quando elaborou árvores genealógicas detalhadas de seus pacientes, descobriu trilhas de câncer entre os parentes voltando a gerações. Achatz ficou perplexa: “Isso realmente me surpreendeu. Havia apenas 280 famílias [com a síndrome] descritas na literatura médica naquela época, e eu tinha 30”.
Mutação exclusiva
Inicialmente, Achatz pensou que estava errando no diagnóstico. Ela só percebeu a importância de sua descoberta quando teve a chance de se encontrar com Pierre Hainaut, belga que trabalhava na Agência Internacional da Organização Mundial de Saúde para Pesquisa do Câncer.
Hainaut tinha uma base de dados de todas as diferentes mutações no gene p53 registradas na literatura médica. Ele ficou intrigado com os dados de Achatz, e juntos eles procuraram identificar exatamente o que havia de errado com os genes dos brasileiros.
Muito poucos dos pacientes tinham mutações “clássicas” em p53 associadas a casos de Li-Fraumeni em outras partes do mundo. A conclusão inicial foi de um diagnóstico errado. Mas uma inspeção mais minuciosa revelou que muitos dos pacientes tinham uma outra mutação em comum, e todos com essa mutação tinham a exata mesma cópia do gene. Isso sugere que um ancestral em comum passou o p53 defeituoso a todos que o possuem hoje. E olha que é bastante gente.
Não temos como rastrear esse “paciente zero” ainda, mas os pesquisadores sugerem que tenha sido um imigrante europeu, um bandeirante ou um tropeiro – enfim, pessoas que cruzaram porções do interior do Brasil e podem ter deixado descendentes por todos os cantos.
Em números
Patricia Prolla, geneticista em Porto Alegre, também encontrou um número incomum de pacientes com síndrome de Li-Fraumeni. Quando percebeu que eles tinham a mesma mutação no p53 que os pacientes de Achatz, tentou descobrir quão prevalente ela poderia ser na população em geral.
Em uma grande amostra de mulheres aparentemente saudáveis que participaram de um programa de rastreio do câncer de mama em Porto Alegre, quase uma a cada 300 tinha o gene defeituoso.
Este resultado surpreendente foi confirmado por um programa de triagem entre quase 200.000 recém-nascidos no Paraná, onde os médicos estavam vendo índices altos de câncer da glândula adrenal em crianças pequenas. Mais uma vez, foi ligado à tal mutação do p53.
E não é apenas o Brasil. A mesma chatíssima mutação também tem sido encontrada no Paraguai, onde geneticistas testaram aleatoriamente 10.000 amostras de sangue de recém-nascidos. Os resultados sugeriram que vários milhares de pessoas vivem com a síndrome de Li-Fraumeni por lá.
Mas… por que o gene continua prevalecente?
Se você entende um pouco sobre como a evolução funciona, sabe que o universo dá um jeito de acabar com genes que causam mortes em favor da sobrevivência da espécie.
É exatamente por isso que a síndrome de Li-Fraumeni é rara. O risco de desenvolver câncer nas pessoas com tais mutações é de cerca de 90%. Quem nasce com tais genes perniciosos têm uma chance muito reduzida de criar uma família, visto que morrem cedo. O risco não é passado adiante.
A mutação brasileira fica no limite entre ser mortal e dar tempo para ser passada adiante. O risco de câncer para aqueles com esse gene encardido é de 50 a 70%. É por essa razão que se espalhou tão longe e afeta hoje um grande número de pessoas. A maioria sobrevive tempo suficiente para passar o gene a seus filhos.
O metabolismo
Agora, a comunidade de pesquisa sobre p53 está centrando-se sobre o papel do metabolismo no câncer. O supressor de tumor tem uma função importante nesta área.
Que o metabolismo das células cancerosas é altamente anormal não é uma nova descoberta. Na década de 1920, o biólogo e médico alemão Otto Warburg notou que as células cancerígenas consomem glicose a uma taxa enorme. Isso vem de um processo conhecido como glicólise aeróbica, acelerado em células com câncer.
Warburg acreditava que este metabolismo alterado era a causa do câncer. Sua teoria provocativa logo foi ofuscada pela revolução da biologia molecular, conforme os cientistas começaram a procurar as causas de tudo em nosso DNA. O apetite excessivo para a glicose (o chamado efeito Warburg) foi relegado a “apenas uma consequência” da transformação maligna das células, e não uma força motriz.
Agora, há evidências de que o metabolismo desempenha um papel mais ativo do que imaginávamos. Trabalhos recentes sobre o p53 apontam para fatores metabólicos absolutamente fundamentais para a biologia do câncer.
A pesquisa avança
Em 2005, os cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA compararam a resistência de ratos normais com aqueles cujo gene p53 tinha sido excluído. Os ratos foram colocados em um balde de água, e aqueles que não possuíam p53 claramente tiveram mais dificuldade em gerar energia suficiente para se manter à tona.
No Instituto Beatson de Glasgow, Karen Vousden e seus colegas descobriram que, no curso normal dos acontecimentos, p53 não só para ou mata células potencialmente perigosas, mas também as ajuda a evitar ou sobreviver coisas que podem danificá-las.
A maneira que o p53 promove a sobrevivência é como regulador do metabolismo, ajudando as células a lidar com flutuações no fornecimento de combustível. “Isso pode ser algo que acontece o tempo todo, e você não necessariamente quer matar todas as células que apenas transitoriamente não tem glicose suficiente”, explica Vousden.
Como regulador do metabolismo, o p53 ajuda as células a resistir ao efeito Warburg, exceto em situações de emergência. Ela também ajuda a afastar radicais livres encorajando a sobrevivência de células. Se o supressor de tumor não funciona, os radicais livres nocivos podem proliferar e as células corrompidas ficam livres para “sequestrar” a maquinaria metabólica e passar a fazer glicólise, que enormemente aumenta a sua capacidade de se replicar. Este é o câncer surgindo.
Tratamento em vista
Esta linha de investigação sobre as anormalidades metabólicas do câncer oferece algumas perspectivas tentadoras para o tratamento de pacientes brasileiros com essa mutação do p53.
Por exemplo, já existem remédios para doenças metabólicas que podem ser redirecionados como novas drogas para o câncer. “Você não precisa fazer ensaios clínicos de segurança”, aponta Vousden, “porque essas drogas já são usadas em milhões de seres humanos há anos”.
Essa é uma vantagem, mas muita exploração ainda precisa ser feita para sabermos o quanto esses medicamentos de fato podem ajudar.
“Entre a prova do princípio e saber como utilizá-lo nas condições certas ainda há uma série de etapas”, adverte Pierre Hainaut. “Mas estou seriamente esperançoso de que vai funcionar, pelo menos para os brasileiros”. [MosaicCancer]