Estudo de Harvard liga lesões cerebrais a fundamentalismo religioso
Um estudo recente, publicado pela Proceedings of the National Academy of Sciences, sugere que danos a certas redes cerebrais podem aumentar a propensão ao fundamentalismo religioso. Ao examinar pacientes com lesões cerebrais localizadas, os cientistas descobriram que lesões em uma rede específica de regiões do cérebro, principalmente no hemisfério direito, estavam relacionadas a um aumento nas crenças fundamentalistas. Essa descoberta traz uma nova luz ao debate sobre as bases neurais do fundamentalismo religioso, um fenômeno que tem sido estudado em psicologia há muito tempo, mas que agora recebe uma atenção renovada na neurociência.
O fundamentalismo religioso se caracteriza por uma aderência rígida a dogmas que são vistos como infalíveis e inquestionáveis. As pessoas com essa mentalidade tendem a exibir traços cognitivos como autoritarismo, resistência à dúvida e pensamento menos complexo. Embora a maioria dos estudos sobre o tema se concentre em fatores sociais e culturais, como o ambiente familiar e a influência da comunidade, a biologia tem emergido como uma área de interesse crescente. Até agora, alguns estudos apontavam para a influência da genética e do funcionamento cerebral na religiosidade, mas havia pouca investigação específica sobre as redes neurais envolvidas no pensamento fundamentalista.
O grupo de pesquisa decidiu abordar essa lacuna no conhecimento, buscando entender como lesões cerebrais poderiam impactar as crenças religiosas, principalmente o fundamentalismo. Estudos anteriores sugeriram que danos ao córtex pré-frontal poderiam intensificar atitudes fundamentalistas, mas eram limitados por amostras pequenas e uma abordagem focada em apenas uma parte do cérebro. Os autores deste novo estudo levantaram a hipótese de que, ao invés de uma única região ser a culpada, o fundamentalismo religioso poderia ser fruto de uma rede complexa de áreas cerebrais interconectadas.
Michael Ferguson, instrutor de neurologia na Harvard Medical School e diretor do Centro de Pesquisa Neuroespiritual, afirmou que seu principal interesse era entender a experiência mística, mas durante suas investigações encontrou uma ligação entre redes cerebrais e o fundamentalismo religioso.
Para explorar se danos a essas redes cerebrais poderiam aumentar a chance de sustentar crenças religiosas rígidas, a equipe utilizou uma técnica chamada mapeamento de redes de lesões. Esta abordagem permite identificar como diferentes regiões do cérebro estão conectadas e como danos em uma área específica podem interromper o funcionamento de redes inteiras. Eles analisaram dois grandes grupos de pacientes com lesões cerebrais focais, aproveitando a oportunidade de examinar como diferentes tipos de lesões poderiam estar associadas às crenças religiosas.
O primeiro grupo era composto por 106 veteranos da Guerra do Vietnã que haviam sofrido lesões cerebrais traumáticas em combate. Já o segundo grupo incluía 84 pacientes de Iowa que sofreram lesões cerebrais por diversas causas, como acidentes vasculares cerebrais, cirurgias e traumas. Esses pacientes preencheram uma escala destinada a medir o fundamentalismo religioso, respondendo a afirmações sobre crenças infalíveis, como a existência de uma única religião verdadeira e a ideia de que certos ensinamentos religiosos são imutáveis.
Usando tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM), os pesquisadores mapearam as lesões cerebrais de cada participante, analisando como as áreas danificadas poderiam estar relacionadas ao aumento ou à diminuição das crenças fundamentalistas. Para isso, eles compararam as lesões dos pacientes com um banco de dados que associava lesões cerebrais a diversas condições neuropsiquiátricas e comportamentais.
Os resultados revelaram que danos em áreas específicas do hemisfério direito do cérebro, como o córtex orbital frontal superior direito, o giro frontal médio direito e o lobo parietal inferior direito, estavam ligados a um aumento nas crenças fundamentalistas. Por outro lado, lesões no lóbulo paracentral esquerdo e no cerebelo direito estavam associadas a uma diminuição dessas crenças.
Os pesquisadores também descobriram que essas regiões cerebrais fazem parte de uma rede mais ampla ligada a funções cognitivas como raciocínio, formação de crenças e tomada de decisões morais. Curiosamente, essas áreas estão associadas à confabulação patológica, um distúrbio em que as pessoas criam falsas memórias sem intenção de enganar. Esse fenômeno é frequentemente relacionado à rigidez cognitiva e à dificuldade em revisar crenças—características comuns em indivíduos com alto grau de fundamentalismo religioso.
Uma descoberta adicional intrigante foi a sobreposição espacial entre lesões associadas ao comportamento criminoso e a rede neural ligada ao fundamentalismo religioso, o que se alinha a pesquisas anteriores que sugerem uma conexão entre crenças religiosas extremas e hostilidade em relação a grupos externos. No entanto, os pesquisadores destacaram que danos a essa rede cerebral não garantem que uma pessoa desenvolverá crenças fundamentalistas, nem implicam que indivíduos com fortes convicções religiosas tenham lesões cerebrais.
Os autores sugerem que futuras investigações examinem como essa rede cerebral pode influenciar o fundamentalismo em populações mais diversas, incluindo pessoas de outras tradições religiosas e contextos culturais. Eles também recomendam estudar pacientes antes e depois de lesões cerebrais para entender melhor como mudanças no cérebro afetam as crenças ao longo do tempo. Além disso, seria interessante investigar como essa rede cerebral se relaciona com outros sistemas de crenças, como ideologias políticas ou convicções morais, para verificar se surgem padrões semelhantes de rigidez cognitiva nesses contextos.
Apesar das possíveis implicações, os pesquisadores frisam que seus achados não devem ser usados para patologizar crenças religiosas, mas sim para entender melhor como nosso cérebro processa e sustenta essas crenças.