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Não, a ciência não pode dizer quando é o começo da vida

Qual é o começo da vida? Essa é, naturalmente, a questão central que alimenta a controvérsia sobre o aborto.

Embora quase todo mundo tenha uma opinião, ninguém pode basear essa opinião na ciência. Se tem uma coisa que não é consenso na comunidade científica, é quando a vida começa.

As evidências que temos hoje sobre o assunto simplesmente não oferecem clareza. Se fez qualquer coisa, o último século de avanços científicos só complicou a resposta.

Começo da vida: limites confusos

Antes de ultrassons e outros avanços médicos, era óbvio quando a vida começava: quando o bebê “chutava”. A primeira vez que uma mulher sentia o chute de seu filho era considerado o momento em que o bebê adquiria uma alma. Quando a esposa de Henrique VIII sentiu o movimento dentro de sua barriga, foi motivo de fogos comemorativos em Londres. No século 19, o aborto era legal na Grã-Bretanha até o chute do bebê (bizarro, mas verdadeiro).

Lógico que esse conceito foi para os ares hoje em dia. Antes de uma mãe poder sentir seu bebê chutando, em torno de 20 semanas, ela já pode ouvir seu batimento cardíaco e ver o contorno obscuro de seu rosto no ultrassom.

De certa forma, a ciência tornou possível o argumento para a personalidade fetal. Ele é defensável porque as pessoas podem olhar dentro do útero e ver que algo está vivo ali.

Na verdade, quando os médicos americanos começaram a coletar embriões humanos e traçar o desenvolvimento embrionário, no final do século 19 e início do 20, houve um movimento a favor de considerar a fertilização como o início da vida fetal, e o aborto ilegal. Mas o próximo século de estudos biológicos deixou os fatos mais embaçados.

Fertilização e implantação

A fertilização in vitro – quando esperma e um óvulo são combinados em um laboratório – permitiu que cientistas observassem diretamente esse processo pela primeira vez. Eles descobriram que ocorre ao longo de tanto tempo quanto 24 horas, e que uma série de mudanças bioquímicas precisam acontecer antes do esperma poder entrar no óvulo.

Dentro do corpo, a fertilização pode acontecer horas ou mesmo dias após a inseminação, conforme o esperma viaja pela trompa de Falópio. Esta viagem também induz alterações na membrana do esperma, fenômeno chamado de capacitação, que o prepara para fertilizar o óvulo.

Mas mesmo a fertilização não é um indicador claro de qualquer coisa. O próximo passo é a implantação, quando o óvulo fertilizado viaja pelas trompas de Falópio e se liga ao útero. “Há uma taxa incrivelmente alta de óvulos fertilizados que não implantam”, explica Diane Horvath-Cosper, ginecologista em Washington, nos EUA. Estima-se que 50 a 80% falham em implantar, e mesmo alguns embriões implantados abortam espontaneamente.

Partindo do princípio de que a fertilização e implantação ocorram perfeitamente, os cientistas ainda podem razoavelmente discordar sobre quando começa a “personalidade fetal”. Um embriologista pode dizer que é na gastrulação, quando um embrião não pode mais se dividir para formar gêmeos idênticos. Um neurocientista pode dizer que é quando pode-se medir as ondas cerebrais do feto. E assim por diante.

Viabilidade de sobreviver

Uma maneira de encontrar um consenso poderia ser permitir o aborto até o ponto em que um feto é viável fora do útero. Mas nem isso é muito claro.

Quando Edward Bell, neonatologista na Universidade de Iowa, nos EUA, começou a praticar medicina na década de 70, esse ponto era de 26 semanas. “O limiar diminuiu em uma semana a cada década”, diz Bell. “Na década de 90, nós todos estávamos confiantes de que 24 semanas ia ser o limite absoluto por causa da biologia”.

E, no entanto, no início deste ano, Bell publicou um artigo no New England Journal of Medicine mostrando resultados razoavelmente bons em bebês prematuros nascidos com 22 semanas de idade gestacional.

Mesmo assim, a fixação de um limiar absoluto de viabilidade fetal é impossível, pois depende de como você o define. É quando alguns bebês sobrevivem? Metade? Ou a maioria? Em 22 semanas, por exemplo, muitos dos bebês que sobrevivem acabam com problemas de saúde permanentes ou deficiências.

Conclusão

Bell não acha que sua pesquisa é apropriada para servir de evidência científica no debate sobre o aborto. Para muitos médicos e cientistas, a questão de quando começa a vida é uma questão de recolher mais provas a fim de se poder chegar a um consenso, o que não tem sido possível até agora.

Há ainda quem acredite que a ciência tem muito pouco a ver com a resposta. O biólogo do desenvolvimento Scott Gilbert, por exemplo, afirma que cada avanço no laboratório torna esse debate mais apropriado para filósofos, teólogos e advogados ao invés de cientistas. [Wired]

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