Ciência sem consciência? A importância da ética na pesquisa científica

Por , em 31.03.2014

Ciência sem consciência – a importância da ética na pesquisa científica.

O analista do Kings College Fellipe Gracio em seu artigo “Scientists can’t claim to be neutral about their discoveries”publicado no  “The Conversation” nos brinda com uma reflexão de visceral importância sobre a ética aplicada às pesquisas.

Nesse artigo ele questiona o quanto de isenção um cientista pode alegar, quando por fim suas descobertas são mal aplicadas e podem representar um perigo para a humanidade.

Essa sensação persegue a história humana, desde que inventos magníficos como o navio, o automóvel e o avião, foram transformados em máquinas de guerra.

Ou mesmo ante as brumas radioativas de Hiroshima e Nagasaki  — Oppenheimer — o pai da bomba atômica — num discurso emocionado se autodenominar “a morte, o destruidor de mundos”.

Isso apenas para citar alguns poucos exemplos.

À medida que a pesquisa científica afeta o mundo convém ficarmos de sobreaviso.

Isso por que a ciência é feita por pessoas.

E todas as pessoas, mesmo sendo cientistas, possuem interesses, intenções e ambições.

Para agravar esse quadro, a ciência é financiada por governos e por empresas — cujas políticas  podem nem sempre visar o bem comum – entendendo essa expressão, em seu sentido mais amplo como sendo o bem, em sua essência, estendido para toda a humanidade.

Fica cada vez mais claro que pesquisa científica atual, em seus passos mais decisivos, está condicionada às regras de financiamento, às expectativas sobre seus resultados e às forças sociais e de instituições que moldam seus rumos.

Ora vejamos:

  • Ninguém investe sem a expectativa de ganhar dinheiro com seu investimento;
  • Mesmo moralmente condenadas, a ambição e a ganância continuam a ditar as regras do mercado também no século XXI.

Ou não?

Na década de 1950, quando Jonas Salk — um dos cientistas que participou do desenvolvimento da vacina contra a poliomielite — foi questionado sobre se ele patentearia a vacina. Ele respondeu com outra pergunta:

— Você poderia patentear o sol?

Em outras palavras:

Pode um cientista propor ou aceitar a privatização de um conhecimento que beneficiaria a todos?

Existem duas linhas de pensamento sobre essa questão:

O primeiro viés advém de empresas (e de governos) que comercializam ciência e tecnologia e são detentores de muitas patentes.

Seu principal argumento pode ser assim resumido:

Como o investimento em programas de pesquisa científica é extremamente oneroso, tanto para empresas quanto para nações é natural oferecer garantia para os investidores de que ocorrerá o retorno desses investimentos. E tais garantias passam invariavelmente pela reserva de mercado e obviamente a privatização das descobertas, protegidas por leis de propriedade intelectual.

O argumento contrário à privatização dos resultados aponta que a restrição do uso de muitas descobertas atrapalha o aperfeiçoamento da própria descoberta, além de reprimir a inovação e o desenvolvimento de novos produtos.

Além de que, ao negar o benefício a outro ser humano se estaria também praticando uma forma de desumanidade.

Por exemplo,

A indústria farmacêutica Novartis tentou bloquear recentemente a fabricação na Índia de um medicamento genérico aplicado na terapia do câncer.

Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Ciências Econômicas, tem uma posição radicalmente contra as leis de propriedade intelectual.

Ele enfatiza que essa prática visa apenas garantir lucros exorbitantes para as desenvolvedoras, que por congelamento do desenvolvimento científico, certifica-se de não haver concorrência.

Pela lei dos mercados é fácil observar o que se resulta de um monopólio, seja em que área for.

Ele dá o exemplo da Myriad Genetics, uma empresa que alegou propriedade intelectual sobre genes humanos.

Este é um exemplo extremo, mas suas observações são amplamente aplicáveis ​​.

Ele explica que, neste caso:

Geneticistas têm argumentado que o registro de patentes sobre os genes realmente tende a impedir o aperfeiçoamento de vários testes genéticos (como prevenção de doenças genéticas, por exemplo) , e de modo geral, interferir com o avanço da própria ciência .

Todo o progresso científico é fundamento em conhecimento. Ao tornar-se esse conhecimento menos disponível impede-se o progresso, ou na melhor das hipóteses, torna-o menos imediato.

É fácil observar que o cientista está no centro deste processo e ele não pode mais se furtar das questões éticas envolvidas em seu trabalho.

Não pode mais evadir-se das questões pertinentes sobre a natureza do progresso científico, sobre as decisões de financiamento de suas pesquisas, ou quais forças estão por trás dos ditos investidores e quais são os interesses que servem.

Eu mesmo, não canso de repetir para meus alunos, que nossas decisões sobre as nossas carreiras afetam não só nossas vidas, mas também a dos que nos cercam.

Eu como cientista não posso alegar neutralidade em questões como esta.

Nenhum cientista pode.

E se Jonas Salk tivesse decidido trabalhar para uma empresa farmacêutica e patenteasse a vacina contra a poliomielite? Quantas pessoas morreriam, ou teriam sequelas por toda a vida?

Considere-se uma questão relevante para o futuro:

Se uma vacina contra a malária ou contra AIDS fosse desenvolvida, deveria ser protegida por registro de patentes, de tal forma que os preços desse monopólio maximizassem sua receita, mas não seus resultados na saúde pública?

De modo mais geral: os cientistas podem realmente justificar os resultados previsíveis dos projetos em que estão envolvidos?

O que deve ser feito, então, para maximizar o benefício da ciência visando o bem comum?

Para começar, podemos educar os cientistas e também fiscalizá-los.

E para isso é necessário que o cidadão busque inteirar-se do que vem a ser ciência e de qual é o real trabalho do cientista.

É preciso que cada um busque entender as decisões tomadas tanto pelos cientistas quanto pelas instituições de pesquisa e querer fazer parte delas.

É legítimo e necessário pedir aos cientistas e aos acadêmicos, e também às instituições, que justifiquem o uso que dão aos  fundos de investimentos em pesquisa;

É justo fiscalizar as ações privadas e públicas nos programas sociais, e debater as prioridades políticas na esfera pública.

E também submeter as decisões  sobre a investigação científica e suas metas de trabalho ao escrutínio da sociedade.

A ciência é uma força incrivelmente poderosa que consome uma grande quantidade de recursos, por isso precisamos ter certeza de que está sendo orientada numa boa direção e para tal é necessário que cada cidadão procure cumprir com o seu papel.

-o-

[Imagem: Arquivo]
[Sugestão de Pauta: Cesar A. K. Grossmann]

[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

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Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.

Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”

Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.

5 comentários

  • Marcelo Ribeiro:

    Mesmo no desenvolvimento da pesquisa básica, que é caríssima e apenas governos são capazes de financiar, deve haver um retorno. Mesmo que não seja diretamente monetário o investimento em pesquisa básica está intimamente ligado ao desenvolvimento do país.

  • Cesar Grossmann:

    Excelente reflexão, e a conclusão, a meu ver, é mais que apropriada: o analfabetismo científico não pode mais ser uma opção. Ninguém pode mais optar por permanecer ignorante destas questões, tem que participar e fiscalizar. Por que se todos olharem para o lado, quem é que vai fiscalizar?

    Mesmo que o cientista tenha ética e se preocupe com o destino de seu trabalho, sem a fiscalização externa ele perde a força.

    Só a título de curiosidade, Openheimer estava citando o Baghavat-Gita. Nas palavras dele, “Vishnu está tentando persuadir o Príncipe que ele deve fazer seu trabalho e para impressioná-lo, ele assume sua forma com vários braços e diz, “Agora eu me tornei Morte, o destruidor de mundos”

    Em inglês, a frase tem uma construção esquisita, não sei se é proposital: “Now I am become Death, the destroyer of worlds”.

  • paulo rerisson:

    Todo cientista com um mínimo de bom senso ,deveria sem sombra de dúvida repudiar tal atitude,pois isso não destrói somente o seu caráter,mas também,vidas necessitadas de solução.

  • Rafael Ernesto:

    As vezes penso que se os seres humanos fossem mais unidos,não houvessem nenhum tipo de barreira,preconceito e egoísmo,em que estágio cientifico nós poderiamos estar?Talvez já tivessemos atingido tecnologias que hoje são apenas um sonho ou produto de ficção,talvez o aquecimento global não aconteceria,e até mesmo teriamos fundado colônias em outros planetas.
    Mas parece que o egoísmo(principalmente entre os grandes)é mais forte do que os prováveis benefícios da união.

  • Joao Emanuel:

    Muito bom, hypescience sempre com o melhor conteúdo!

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