Desvendando o mistério da homocriralidade: O papel do efeito CISS

Por , em 15.10.2023
Os seres vivos são assimétricos, mesmo em nível molecular: Embora muitas biomoléculas essenciais existam em formas distintas de imagem espelhada, as células tendem a usar exclusivamente uma dessas formas. ILUSTRAÇÃO: LOU KISS/REVISTA QUANTA.

Em 1848, Louis Pasteur, um jovem químico, fez uma descoberta intrigante relacionada a cristais enquanto experimentava com vinho fervido. Alguns desses cristais eram ácido tartárico, um valioso sal industrial encontrado naturalmente em barris de vinho. No entanto, os outros cristais eram idênticos em forma, mas tinham uma orientação reversa em uma das faces. Pasteur conseguia separá-los como imagens espelhadas. Essa observação levou à exploração da quiralidade, uma propriedade na qual as moléculas existem como pares de imagens espelhadas com propriedades distintas. As células vivas tendem a usar apenas uma quiralidade para moléculas específicas. Por exemplo, os açúcares do DNA são destros, e os aminoácidos nas proteínas são canhotos. A quiralidade incorreta em medicamentos pode levar à toxicidade.

Os cientistas têm refletido sobre por que a vida exibe tal homochiralidade, com várias teorias propostas, mas nenhuma explicação completa sobre por que redes inteiras de biomoléculas são homochirais. Recentemente, uma equipe de Harvard propôs uma hipótese inovadora. Eles sugerem que superfícies magnéticas em minerais nos corpos d’água da Terra primitiva, influenciadas pelo campo magnético do planeta, atuaram como “agentes quirais”. Essas superfícies atraíam preferencialmente certos enantiômeros de moléculas, amplificando a quiralidade desde os precursores de RNA até as proteínas, potencialmente explicando o surgimento da homochiralidade na vida.

A base dessa teoria está relacionada ao Efeito de Spin Induzido pela Quiralidade (CISS), onde moléculas quirais filtram seletivamente elétrons com base na orientação de seu spin. Esse efeito, descoberto por Ron Naaman e sua equipe, influencia como as moléculas interagem com superfícies magnéticas. Se os viéses de spin da molécula e da superfície forem opostos, eles se atraem, amplificando a quiralidade. Importante destacar que esse efeito pode ocorrer com campos magnéticos de força semelhante ao da Terra.

Para testar essa hipótese, S. Furkan Ozturk e sua equipe realizaram experimentos usando superfícies de magnetita. Eles descobriram que essas superfícies poderiam induzir quiralidade em moléculas e promover o crescimento de cristais homocrirais. Embora o campo magnético usado no experimento inicial fosse mais forte do que o da Terra, experimentos subsequentes revelaram que moléculas quirais adsorvidas em superfícies magnéticas criavam um campo magnético local, tornando o cenário plausível.

Um modelo proposto por Ozturk, Dimitar Sasselov e John Sutherland explica como as informações quirais poderiam se propagar em uma rede pré-biótica. Moléculas precursoras de RNA com a mesma quiralidade da superfície preferencialmente formariam proteínas de quiralidade oposta, possivelmente explicando a prevalência de nucleotídeos destros e aminoácidos canhotos na biologia.

Embora essa teoria seja promissora, ela ainda é hipotética e requer testes adicionais, possivelmente em ambientes geológicos. Alguns cientistas permanecem céticos e acreditam que a síntese de RNA em condições primordiais enfrenta desafios devido à estabilidade das moléculas. No entanto, o efeito CISS apresenta uma hipótese criativa e testável que pode lançar luz sobre o mistério da homocriralidade nas origens da vida.

Para entender a importância desse fenômeno, é essencial compreender a quiralidade. Em termos simples, a quiralidade refere-se à propriedade de uma molécula de ser uma imagem espelhada não sobreponível de si mesma. Imagine suas mãos: elas são imagens espelhadas uma da outra, mas não podem ser sobrepostas diretamente. Um é a versão espelhada do outro. Da mesma forma, as moléculas quirais são como as mãos da química – idênticas em composição, mas diferentes na disposição tridimensional.

A quiralidade é uma característica comum em moléculas orgânicas e desempenha um papel fundamental na química e na biologia. Por exemplo, as moléculas que compõem o DNA e as proteínas são quirais. Isso significa que essas biomoléculas têm uma quiralidade específica, e essa quiralidade é vital para suas funções biológicas.

No entanto, o que torna a quiralidade ainda mais fascinante é o fato de que a vida na Terra exibe uma preferência consistente por uma forma específica de quiralidade. Em outras palavras, os seres vivos na Terra tendem a usar apenas uma das duas versões quirais disponíveis para as moléculas.

Por exemplo, os açúcares no DNA são sempre destros, e os aminoácidos nas proteínas são sempre canhotos. Essa preferência consistente por uma quiralidade específica é conhecida como homocriralidade e é uma característica marcante da química da vida na Terra.

A questão intrigante é: por que a vida na Terra exibe essa homocriralidade? Por que os seres vivos escolhem consistentemente uma forma específica de quiralidade em suas biomoléculas?

ILUSTRAÇÃO: MERRILL SHERMAN/QUANTA MAGAZINE

Essas perguntas têm intrigado cientistas por décadas, e várias teorias foram propostas para explicar a origem da homocriralidade na vida. No entanto, até recentemente, nenhuma teoria conseguiu oferecer uma explicação completa e convincente para esse fenômeno.

É nesse contexto que a hipótese do Efeito de Spin Induzido pela Quiralidade (CISS) entra em cena. Essa hipótese sugere que as moléculas quirais têm a capacidade de influenciar o comportamento dos elétrons com base na orientação de seu spin. Em outras palavras, as moléculas quirais podem “seletivamente” interagir com elétrons que têm um determinado spin, permitindo que essas moléculas interajam de maneira diferente com outras moléculas e superfícies, dependendo da orientação do spin dos elétrons envolvidos.

Essa capacidade das moléculas quirais de interagir seletivamente com elétrons com base no spin é o que torna o CISS tão interessante para a explicação da homocriralidade na vida. A hipótese é que, em algum ponto da história da Terra, as moléculas quirais interagiram com superfícies magnéticas em ambientes aquáticos primitivos. Essas interações seletivas com elétrons teriam levado à amplificação da quiralidade, fazendo com que as moléculas quirais se tornassem predominantemente destros ou canhotas, dependendo da orientação do spin dos elétrons envolvidos.

Para testar essa hipótese, os cientistas realizaram experimentos usando superfícies magnéticas e moléculas quirais em laboratório. Eles descobriram que as superfícies magnéticas podiam influenciar a quiralidade das moléculas e promover o crescimento de cristais homocrirais. Esses resultados experimentais sugerem que o CISS pode, de fato, desempenhar um papel importante na origem da homocriralidade na vida.

No entanto, vale ressaltar que essa hipótese ainda está em estágios iniciais de pesquisa e requer mais estudos e experimentos para ser completamente validada. Além disso, existem outras teorias concorrentes que também buscam explicar a homocriralidade na vida, e é importante continuar investigando todas essas hipóteses para obter uma compreensão abrangente desse fenômeno fascinante.

Em uma superfície magnética, cristais de um precursor de RNA chamado RAO podem se formar como estruturas tanto canhotas quanto destras. FOTOGRAFIA: S. FURKAN OZTURK.

Independentemente de qual teoria eventualmente prevaleça, a busca pela compreensão da homocriralidade na vida é um exemplo impressionante de como a química e a biologia podem se entrelaçar para desvendar os mistérios da vida na Terra. A quiralidade é uma das características mais fundamentais da química orgânica, e sua influência sobre os processos biológicos é profunda. À medida que os cientistas continuam a explorar esse fenômeno, eles podem descobrir insights valiosos sobre as origens da vida e como a química da vida evoluiu ao longo do tempo. É uma jornada emocionante que continua a desafiar nossa compreensão da natureza e da vida na Terra. [Wired]

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