Cientista apresenta pela primeira vez uma teoria física para o surgimento da vida

Por , em 31.07.2017
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O biofísico Jeremy England fez algum estardalhaço em 2013 com uma nova teoria que projeta a ideia de origem da vida como um resultado inevitável da termodinâmica. Suas equações sugeriram que, sob certas condições, grupos de átomos se reestruturam naturalmente para queimar mais e mais energia, facilitando a dispersão incessante do que foi queimado e o surgimento de entropia, ou desordem, no universo. O físico afirmou que esse efeito de reestruturação, que ele chama de adaptação orientada para a dissipação, promove o crescimento de estruturas complexas, incluindo seres vivos. A existência da vida não é um mistério ou um momento de sorte, ele disse à Quanta em 2014, mas, em vez isso, segue princípios físicos gerais que “deveriam ser tão óbvios quanto o fato de que as rochas rolam para baixo”.

Desde então, England, professor associado da Massachusetts Institute of Technology, vem testando partes de sua ideia em simulações nos computadores. Os dois estudos mais significativos dentre os que England operou foram publicados neste mês – o resultado mais marcante ocupou páginas da Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e o outro pode ser encontrado na Physical Review Letters (PRL). Os resultados de ambos os experimentos parecem apoiar a tese geral de England sobre a adaptação orientada para a dissipação, embora as implicações na vida real sigam sendo especuladas.

“Esta é, claramente, uma pesquisa pioneira”, disse Michael Lässig, físico estatístico e biólogo quantitativo da Universidade de Cologne, na Alemanha, sobre o artigo da PNAS escrito por England e por um colega da medicina, o pós-doutor Jordan Horowitz. “Mas é um estudo de caso sobre um determinado conjunto de regras em um sistema relativamente pequeno, por isso é talvez um pouco cedo para dizer se ele corresponde a uma generalização”, disse Lässig. “Mas o interesse mais óbvio é questionar o que isso significa para a vida”.

Estudo físico

O artigo detalha os mínimos pormenores das células e da biologia e descreve um sistema de produtos químicos simulado e mais simples, no qual é possível, para uma estrutura excepcional, surgir espontaneamente – o fenômeno que England define como a força motriz da origem da vida. “Isso não significa que será garantidamente possível chegar a essa estrutura”, explicou England. Segundo ele, a dinâmica do sistema é muito complicada e irregular para prever o que acontece com ela.

A simulação envolveu um condensado de 25 produtos químicos que reagem uns com os outros de várias maneiras. As fontes de energia no ambiente da mistura facilitam ou “forçam” algumas dessas reações químicas, assim como a luz solar desencadeia a produção de ozônio na atmosfera e o estímulo de ATP gera processos na célula. Começando com concentrações químicas iniciais aleatórias, taxas de reação e “panoramas forçados” – regras que determinam quais reações são impulsionadas por forças externas e em quais quantidades – a cadeia de reação química simulada evolui até atingir seu estado final e estável, ou “ponto fixo”.

Muitas vezes, o sistema se estabelece num estado de equilíbrio, onde mantém uma concentração estável de produtos químicos e reações que vão com tanta frequência num sentido quanto na direção inversa. Essa tendência de equilíbrio, como uma xícara de café esfriando rumo à temperatura ambiente, é o resultado mais conhecido da segunda lei da termodinâmica, segundo a qual a energia se espalha constantemente e a entropia do universo sempre aumenta. A segunda lei é verdadeira porque há mais maneiras para a energia se espalhar entre partículas do que para se concentrar. Conforme elas se movem e interagem, as probabilidades favorecem o compartilhamento crescente de energia.

Mas, em algumas configurações iniciais, a cadeia de reações químicas no experimento simulado segue uma direção totalmente diferente. Nesses casos, ela evolui para pontos fixos distantes do equilíbrio, onde circula vigorosamente através de reações, aproveitando o máximo de energia possível do ambiente. Tais casos “podem ser reconhecidos como exemplos de aparente afinação” entre o sistema e o ambiente ao redor, escrevem Horowitz e England, nos quais o sistema encontra “estados raros de extrema força termodinâmica”.

Seres vivos também mantêm estados estáveis ​​na geração de força extrema: somos superconsumidores que queimam por meio de enormes quantidades de energia química, degradando-a e aumentando a entropia do universo, enquanto impulsamos as reações em nossas células. O teste simula este comportamento na estabilidade de um sistema químico mais simples e mais abstrato e mostra que ele pode surgir “como que imediatamente, sem grandes intervalos de espera”, disse Lässig, indicando que esses pontos fixos podem ser facilmente alcançados na prática.

Muitos biofísicos pensam que algo como o que England está sugerindo pode conduzir a, pelo menos, parte da história da vida. Mas se o físico identificou o passo mais crucial na origem da existência é uma conclusão que depende, em certa medida, do questionamento: qual a essência da vida? As opiniões divergem.

Forma e função

England, considerado um prodígio por muitos e que passou pelas universidades de Harvard, Oxford, Stanford e Princeton antes de se fixar no MIT aos 29 anos, vê a essência dos seres vivos como o arranjo excepcional de seus átomos componentes. “Se eu imaginar uma reorganização aleatória dos átomos da bactéria – e apenas rotulá-los e permutá-los no espaço – eu presumivelmente vou conseguir algo que é nada mais do que lixo”, disse ele no início deste mês. “A maior parte dos arranjos [de blocos de construção atômicos] não terão a potência metabólica de uma bactéria”.

Não é fácil para um grupo de átomos se abrir e queimar energia química. Executar esta função demanda que os átomos se disponham de forma altamente incomum. Segundo England, a própria existência de uma relação forma-função mostra que existe um desafio gerado pelo ambiente, que faz com que a estrutura do sistema seja vista como uma reunião.

Mas como e por que os átomos adquirem a forma e a função particulares de uma bactéria, com a mesma configuração ideal para consumir energia química? England sugere a hipótese de que isso constitui um resultado natural da termodinâmica em sistemas de equilíbrio instável.

Outras pesquisas

O químico e físico Ilya Prigogine, vencedor de um Prêmio Nobel, perseguiu ideias semelhantes na década de 1960, mas suas ferramentas e métodos eram limitados. As equações termodinâmicas tradicionais funcionam apenas no estudo de sistemas de equilíbrio misto, como um gás que é aquecido ou resfriado lentamente. Os sistemas conduzidos por poderosas fontes de energia externa têm uma dinâmica muito mais complicada e são muito mais difíceis de serem estudados.

A situação se modificou no final da década de 1990, quando os físicos Gavin Crooks e Chris Jarzynski derivaram “teoremas de flutuação” que podem ser usados ​​para quantificar com que maior frequência ocorrem certos processos físicos em relação aos seus reversos. Esses teoremas permitem que os pesquisadores estudem a evolução dos sistemas – mesmo os de equilíbrio instável. O “novo ângulo” da England, disse Sara Walker, física teórica e especialista em origens da vida pela Arizona State University, tem aplicado os teoremas de flutuação “a problemas relevantes para estudos sobre a origem da vida. Eu acho que ele, provavelmente, é a única pessoa a fazer isso de maneira rigorosa”.

O café esfria porque não há nenhuma fonte a aquecê-lo, mas os cálculos de England sugerem que grupos de átomos conduzidos por fontes de energia externa podem se comportar de outra maneira: tendem a tocar levemente essas fontes, alinhando e rearranjando-se para absorver melhor a energia e dissipá-la sob a forma de calor. Ele ainda mostrou que essa tendência estatística para dissipar a energia poderia favorecer a auto-replicação. Como ele explicou em 2014: “Uma ótima maneira de dissipar mais energia é fazer mais cópias de si mesma”.

England vê a vida, bem como sua extraordinária confluência de forma e função, como o resultado final da adaptação por dissipação conduzida e da auto-replicação.

No entanto, mesmo com os teoremas de flutuação disponíveis, as condições no início da Terra ou dentro de uma célula são muito complexas para serem previstas desde suas manifestações iniciais. É por isso que as ideias devem ser testadas em ambientes simplificados e simulados por computador que têm a meta de capturar o sabor da realidade.

Simulações

No artigo publicado na PRL, England e os co-autores Tal Kachman e Jeremy Owen, também do MIT, simularam um sistema de partículas em interação. Eles descobriram que o sistema aumenta sua absorção de energia com o passar tempo, formando e quebrando ligações para ressoar numa melhor frequência de condução. “Isso é, em certo sentido, um pouco mais básico enquanto resultado” do que as descobertas publicadas na PNAS envolvendo as cadeias de reação química, disse England.

Crucialmente, no último trabalho, ele e Horowitz criaram um ambiente desafiador onde configurações especiais seriam necessárias para aproveitar as fontes de energia disponíveis, assim como o arranjo atômico específico de uma bactéria a permite metabolizar energia. No ambiente simulado, fontes de energia externas impulsionaram (ou “forçaram”) certas reações químicas na cadeia. A extensão dessa força dependia das concentrações dos diferentes elementos químicos. À medida que as reações progredissem e as concentrações evoluíssem, a quantidade de força mudaria abruptamente. Uma estrutura tão forte e áspera tornou difícil para o sistema “encontrar combinações de reações capazes de extrair energia de forma otimizada”, explicou Jeremy Gunawardena, matemático e biólogo de sistemas da Harvard Medical School.

No entanto, quando os pesquisadores deixaram que as redes de reação química se desenvolvessem em um ambiente desse tipo, as cadeias pareciam se ajustar bem ao panorama. Um conjunto aleatório de pontos de partida passou a atingir estados raros de atividade química vigorosa e geração de força quatro vezes maior do que o esperado. Esses resultados se manifestaram drasticamente: as cadeias químicas atingiram o percentual de 99% em termos de quanta geração de força eles experimentaram em comparação com todos os resultados possíveis. Uma vez que esses sistemas agitaram os ciclos de reação e a energia dissipada no processo, a relação forma-função básica que England vê como essencial para a vida passa a se encaixar.

Processadores de informação

Especialistas avaliaram que um próximo passo importante para England e seus colaboradores seria expandir sua cadeia de reação química e ver se ela ainda evolui dinamicamente para pontos fixos raros de geração extrema de força. Eles também podem tentar tornar a simulação menos absurda baseando as concentrações químicas, as taxas de reação e forçando panoramas em condições que poderiam ter existido em piscinas com ondas ou aberturas vulcânicas próximas à concentração da Terra primitiva (mas replicar as condições que realmente deram origem à vida ainda está no terreno da adivinhação). Rahul Sarpeshkar, professor de engenharia, física e microbiologia na Dartmouth College, disse: “Seria bom ter alguma instanciação física concreta dessas construções abstratas”. Ele espera ver as simulações recriadas em experimentos reais, talvez usando elementos químicos biologicamente relevantes e fontes de energia como a glicose.

Mas, mesmo que os pontos fixos alinhados possam ser vistos em configurações que podem cada vez mais conjurar vida e seus inícios presumíveis, alguns pesquisadores consideram a tese geral de England como “necessária, mas insuficiente” para explicar a vida, como disse Walker, porque não pode contar com o que muitos veem como a verdadeira marca registrada dos sistemas biológicos: sua capacidade de processar informações. Da simples quimiotaxia (a habilidade de as bactérias se moverem na direção das concentrações de nutrientes ou para longe de uma substância venenosa) até a comunicação humana, as formas de vida aceitam e respondem às informações que existem no próprio ambiente.

Na visão de Walker, isso nos distingue de outros sistemas que se enquadram na teoria de Englad, como o Great Red Spot de Jupiter. “Essa é uma estrutura dissipativa altamente instável que existe há pelo menos 300 anos, e é bastante diferente das estruturas dissipativas de instabilidade que existem na Terra agora e que evoluíram ao longo de bilhões de anos”, disse ela. Compreender o que distingue a vida, ela acrescentou, “requer alguma noção explícita de informação que a leve além do processo de estruturas instáveis do tipo dissipativas”. Na sua opinião, a capacidade de responder às informações é fundamental: “Precisamos de cadeias de reação química que possam se levantar e se afastar do ambiente em que se originaram “.

Gunawardena observou que, além das propriedades termodinâmicas e das habilidades de processamento de informações das formas de vida, elas também armazenam e passam informações genéticas sobre si mesmas para seus descendentes. A origem da vida, disse Gunawardena, “não é apenas uma questão de estrutura, é o surgimento de um tipo particular de dinâmica, que é darwinista. É o surgimento de estruturas que se reproduzem. E é também a capacidade que as propriedades desses objetos têm de influenciar suas taxas reprodutivas. Uma vez que essas duas condições estão garantidas, você está basicamente em uma situação na qual a teoria de Darwin entra em ação, e para os biólogos, é disso que a questão se trata”.

Eugene Shakhnovich, professor de química e biologia em Harvard, que supervisionou a pesquisa de graduação da England, enfatizou de forma acentuada a divisão entre o trabalho do ex-aluno e as questões biológicas. “Ele começou sua carreira científica no meu laboratório e eu realmente sei até onde vai sua capacidade”, disse Shakhnovich, mas “o trabalho de Jeremy representa exercícios potencialmente interessantes na mecânica estatística instável de sistemas abstratos simples”. Qualquer afirmação de que isso tenha a ver com biologia ou com as origens da vida, acrescentou, são “meras especulações”.

Mesmo que England esteja no caminho certo quanto às questões da física, os biólogos querem mais detalhes – como uma teoria sobre o que seriam as “protocélulas” primitivas que evoluíram para as primeiras células vivas, ou como surgiu o código genético. England concorda completamente que suas descobertas trazem silêncio a essas perguntas. “No curto prazo, não estou dizendo que isso me diz muito sobre o que está acontecendo em um sistema biológico, nem mesmo afirmando que isso vai necessariamente nos dizer de onde surgiu a vida como a conhecemos”, disse ele. Ambas as questões são ‘uma completa bagunça’ baseada em ‘evidências fragmentárias’, que ele diz estar inclinado a conduzir com clareza por enquanto. Ele sugere que, no kit de ferramentas da primeira vida ou protoformas de vida, “talvez haja mais que se possa obter de graça, e então será possível otimizá-la por meio do mecanismo darwinista”.

Sarpeshkar pareceu ver a adaptação orientada para a dissipação como o momento de abertura na história de origem da vida. “O que Jeremy está mostrando é que, enquanto você pode colher energia de seu ambiente, a ordem surgirá espontaneamente e se ajustará sozinha”, disse ele. Os seres vivos têm feito muito mais do que England e a cadeia de reação química de Horowitz, ele observou. “Mas isso é sobre como a vida surgiu pela primeira vez, talvez – sobre como se alcança a ordem a partir do nada”. [QuantumMagazine]

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