Viés de sobrevivência: a falha de raciocínio que afeta a sociedade
Você com certeza já ouviu alguém dizendo algo como “Tanta gente agora diz que tem depressão! No meu tempo não existia depressão” ou, em um “argumento” que faz sucesso em grupos anti-vacina, “O autismo não existia antes das vacinas”. Embora afirmações desse tipo possam parecer fazer algum sentido, muitas vezes elas caem em uma falácia lógica.
Conhecido em vários campos do conhecimento, da economia a estudos de evolução, o viés de sobrevivência parece estar na raiz desse tipo de lógica – especialmente a que classifica determinadas doenças ou comportamentos como inerentes à modernidade. Viés de sobrevivência é o erro lógico de, em uma análise, concentrar a atenção em pessoas ou coisas que passaram por algum processo de seleção e ignorar aquelas que não o fizeram, normalmente por causa de sua falta de visibilidade. Isso pode levar a conclusões falsas de várias maneiras diferentes.
Se três dos cinco melhores classificados em um vestibular concorrido, por exemplo, vêm do mesmo colégio, isso pode dar a impressão que aquela escola tem um sistema educacional excelente. Ainda que isso possa ser verdade, essa análise não pode ser feita sem olhar as notas de todos os estudantes daquela escola, não apenas as dos que “sobreviveram” ao processo de seleção dos cinco melhores.
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Assim, a lógica de que algo como intolerância à lactose é uma doença que só existe atualmente, está desconsiderando todas as pessoas que nunca souberam que sofriam dela simplesmente porque o diagnóstico ainda não existia ou não era disseminado. Ou seja, se, no passado, todas as pessoas que sentiam um mal estar quando consumiam derivados do leite, mas não percebiam que as duas coisas poderiam estar conectadas, tivessem sido diagnosticadas, o número de intolerantes poderia ser tão alto décadas atrás quanto é agora.
Desconfie de soluções fáceis demais
O viés de sobrevivência, muitas vezes, leva a crenças excessivamente otimistas, porque falhas são ignoradas. Recentemente, esse tópico entrou nas discussões do Tumblr e, como não poderia deixar de ser, os usuários não perderam a oportunidade de fazer graça. ”Bem, nós não tínhamos essas doenças crônicas chiques no meu tempo. O que as pessoas faziam naquela época??’ Elas morriam, Ashleigh”, comentou @rosslynparadin.
Embora muitas pessoas gostem de salientar que um termo como “autismo” não existia no passado, elas não percebem que só porque o termo não existia, isso não significa que as pessoas com neurodiversidade não existiam. Segundo o Bored Panda, o termo foi adotado em 1938 por Hans Asperger e registros médicos mostram que as descrições de vários sintomas foram registradas muito antes de o autismo ser nomeado.
O usuário @writeawayjake resgatou uma história da Primeira Guerra Mundial, quando capacetes de metal começaram a ser usados durante as batalhas europeias. “Assim que eles instituíram os capacetes, [o número de] lesões na cabeça disparou. Agora, por que isso aconteceria? Os capacetes não deveriam ajudar? Eventualmente, eles perceberam que [os capacetes] estavam ajudando: todos esses novos ferimentos seriam, anteriormente, fatalidades”, escreveu.
Já @justjoanne242 lembrou que mesmo romances históricos podem ser uma boa fonte de informação sobre o quão diferente era a relação das pessoas com doenças que hoje são resolvidas com remédios baratos, encontrados em qualquer farmácia, como um resfriado. “Por que vocês acham que todo mundo fica tão frenético quando pegam uma chuva em um livro da Jane Austen?”, postou.
A falácia do argumento “E cresci sem problemas”
O exemplo foi muito bem pensado, afinal as duas obras mais famosas da autora trazem situações do tipo e são um bom panorama de quão frágil a nossa saúde é sem o auxílio da medicina moderna. Em “Razão e Sensibilidade”, Marianne Dashwood desenvolve uma febre alta e quase fatal depois de caminhar à noite pela grama gelada. Já Jane Bennet, de “Orgulho e Preconceito”, fica de cama por dias depois de cavalgar na chuva. As situações refletem o pensamento do século XIX, que associava muitos males ao clima.
Mudanças sociais
No Tumblr, pessoas também ressaltaram que mudanças sociais são outra das vítimas dessa falha de raciocínio. “Isso também parece ser o motivo pelo qual as pessoas dizem que há ‘mais’ pessoas gays e trans agora. Não, [há] o mesmo número de pessoas LGBT do que antes, mas eles podem de fato perceber e compreender a sua identidade, transição, sair do armário e etc”, apontou @astormlikethis.
A conta @feminismandmedia, por sua vez, apontou que há teorias que indicam que essa mesma lógica existe em lugares que têm mais relatos de tráfico sexual onde há legalização da prostituição. “Não é que legalizar/descriminalizar o trabalho sexual abre o caminho para o tráfico sexual, mas mais que as vítimas conseguem fazer denúncias sem o medo de serem processadas [por serem trabalhadoras do sexo]”.
Segunda Guerra Mundial e o viés de sobrevivência
Estudos com o viés de sobrevivência foram usados até mesmo durante a Segunda Guerra Mundial. Tentando minimizar a perda de aeronaves durante o conflito, pesquisadores estavam estudando os danos causados aos aviões que haviam retornado de missões, recomendando que a estrutura fosse reforçada nas áreas mais danificadas. Parece uma boa lógica, certo? No entanto, a sua aplicabilidade não é das mais úteis.
O estatístico Abraham Wald, então na Universidade de Columbia, levou o viés de sobrevivência em consideração para fazer a sua análise. Ele observou que o estudo estava considerando apenas os aviões que haviam sobrevivido às missões – e, portanto, os bombardeiros que foram abatidos não estavam presentes para que pudessem ser levados em consideração.
Assim, os buracos nas aeronaves mostravam justamente o contrário do pretendido: ao invés de áreas frágeis, eram, na verdade, regiões em que os veículos poderiam ser atingidos e mesmo assim voltar para casa em segurança. A proposta de Wald, então, foi de que a fossem reforçadas as partes que não apresentavam danos, já que elas eram as que, caso fossem atingidas, dariam perda total aos aviões.
O trabalho de Wald é considerado seminal para a disciplina da pesquisa operacional. Esse ramo interdisciplinar da matemática aplicada utiliza modelos matemáticos, estatísticos e de algoritmos para ajudar na tomada de decisões. [Bored Panda]