Um laboratório onde líquidos fluem para cima e sólidos atravessam um ao outro

Por , em 14.04.2014

Por séculos, artistas e ilusionistas convenceram as massas de que é possível negar a gravidade ou atravessar paredes. Platéias antigas surpreendiam-se com truques de levitação que envolviam mulheres voando em cima de mesas. Mesmo antes disso, inventores faziam marketing dos seus produtos tentando vender máquinas que faziam coisas impossíveis. Até hoje, alguns mágicos ainda fazem anéis sólidos entrar um no outro etc. Mas isso tudo é truque barato perto do que o mundo real tem a oferecer.

Resfrie um pedaço de metal ou um recipiente de hélio até quase o zero absoluto e, nas condições certas, você verá o metal levitar sobre um ímã, hélio líquido subindo as paredes ou sólidos se atravessando. “Nós adoramos observar esses fenômenos no laboratório”, afirma o cientista Ed Hinds.

Mas a esquisitice não é apenas entretenimento. Desses estranhos acontecimentos nós podemos provocar toda a química e biologia, encontrar salvação para nossa crise energética e talvez até revelar a natureza do universo.

Bem-vindo a um mundo incrível

Esse mundo é frio. Só existe a poucos graus do zero absoluto, a menor temperatura possível. Apesar de você imaginar que pouca coisa acontece nesse frio, este é um mundo selvagem, quase surreal.

Uma maneira de cruzar esse limiar é resfriar hélio líquido até um pouco acima de -271.15 Celsius. A primeira coisa que você irá notar é que pode girar o hélio, e ele vai continuar girando. Isso porque ele agora é um “superfluido”, um estado líquido sem viscosidade. Outra interessante propriedade do superfluido é que ele sobe pelas paredes do recipiente.

Apesar de fascinantes, esses prodígios que desafiam a gravidade talvez não sejam tão úteis. Porém, as estranhas propriedades térmicas do hélio superfluido até que têm algum uso prático.

Pegue um líquido normal da geladeira e ele vai esquentar. No caso de um superfluido, essas leis não funcionam. Pesquisadores que trabalham no Grande Colisor de Hádrons (GCH) usam essa propriedade para acelerar raios de prótons. Eles passam 120 toneladas de hélio superfluido ao redor dos 27 quilômetros do acelerador para resfriar os milhares de ímãs que guiam os raios.

Hélio líquido comum iria esquentar consideravelmente se usado dessa forma, mas as extraordinárias propriedades da versão superfluida faz com que a temperatura suba menos do que 0,1 Celsius por quilometro do arco. Sem os superfluidos, seria impossível que a máquina preferida entre muitos físicos funcionasse.

Aliás, os ímãs do GCH também têm superpropriedades. Eles são feitos dos primos dos superfluidos, os supercondutores.

Quando a temperatura começa a se aproximar do zero absoluto, muitos metais perdem toda a resistência à eletricidade. Não é apenas uma redução gradual, mas uma queda dramática a uma temperatura específica. Isso acontece em um ponto diferente para cada metal, e revela um poderoso fenômeno.

Muito pouca energia é necessária para que os supercondutores carreguem grandes cargas, o que significa que eles geram poderosos campos magnéticos – por isso sua presença no GCH. E assim como um superfluido roda sem parar, um circuito elétrico em um supercondutor nunca acaba. Isso os torna perfeitos para transportar energia ou armazená-la.

Os cabos usados para transmitir eletricidade dos geradores até as casas perdem cerca de 10% da energia carregada na forma de calor, devido à resistência elétrica. Os cabos supercondutores iriam perder 0%.

Armazenar energia nesse caso seria ainda mais interessante. Fontes renováveis, como a vinda do sol, do vento ou das ondas, iriam conseguir um avanço incrível. Se os supercondutores fossem usados para guardar o excesso produzido, a demanda das fontes seria reduzida, e os problemas energéticos mundiais seriam bem reduzidos.

E nós já estamos colocando supercondutores para trabalhar. Na China e Japão, trens experimentais usam outra qualidade do mundo supercondutor: o efeito Meissner.

Solte um pedaço de supercondutor em cima de um ímã e ele vai deslizar por cima, ao invés de cair. Isso porque o ímã induz correntes no supercondutor que criam seu próprio campo magnético, em oposição ao do ímã. A repulsão mútua mantém o supercondutor no ar. Coloque um trem em cima disso e você tem a base certa para levitar – um sistema de transportes sem fricção. Esses trens magnéticos não usam metais supercondutores por ser muito caro mantê-los resfriados; ao invés disso, eles usam cerâmicas que conseguem superconduzir a temperaturas mais altas, tornando o processo muito mais fácil e barato de ser resfriado com nitrogênio líquido.

Uma história de duas partículas

São comportamentos estranhos esses, não? Tanto a superfluidez quanto a supercondutividade são produtos do mundo quântico. Imagine que você tem duas partículas idênticas, e você troca a posição delas. O sistema físico parece o mesmo, e responde de maneira igual. Mas, de acordo com a mecânica quântica, uma partícula pode existir em vários lugares e se mover em mais de uma direção ao mesmo tempo.

No século passado, teóricos demonstraram que as propriedades físicas de um objeto quântico dependem da soma de todas essas possibilidades para dar a probabilidade de encontrá-lo em determinado estado. Existem dois resultados dessa soma, um onde o fator fase é 1 e outro é -1. Esse número representam dois tipo de partículas, os bóson e os férmions.

A diferença entre eles fica clara em baixas temperaturas. Isso porque quando se retira toda a energia termal, quando está próximo do zero absoluto, não existem muitos estados energéticos disponíveis. As únicas possibilidades nas equações teóricas quânticas são as mudanças de posições das partículas.

Mudar o bóson dá uma mudança de fase 1. Usando as equações para as propriedades dos bósons, se descobre que seus estados se revelam de uma maneira direta, ou seja, existe alta probabilidade de encontrar bósons indistintos no mesmo estado quântico.

Em 1924, Albert Einstein e Satyendra Bose sugeriram que, em temperaturas muito baixas, os corpos de bósons indistinguíveis iriam se aglutinar e funcionar como um objeto único, hoje conhecido como condensado de Bose-Einstein, ou CBE.

Átomos de hélio são bósons, e a sua formação em CBEs é o que gera o superfluido. Você pode imaginar o hélio CBE como um átomo gigante em um estado energético quântico mais baixo. Suas estranhas propriedades derivam disso.

A falta de viscosidade, por exemplo, deriva do fato de que existe um espaço muito grande entre esse estado energético e o próximo possível. A viscosidade é simplesmente a dissipação de energia por fricção, mas já que CBE está no estado energético mais baixo possível, não há como perdê-la. Apenas adicionando muita energia você consegue tirar um líquido do estado de superfluidez.

Supercondutores também são CBEs. Aqui, entretanto, existe uma complicação porque os elétrons, as partículas responsáveis pela condutividade elétrica, são férmions.

Férmions são solitários. Trocá-los de lugar é como por a mão esquerda na direita – as coisas não parecem as mesmas. Matematicamente, essa ação introduz uma mudança de fase -1 na equação que descreve suas propriedades. O resultado quando se soma todos os estados é zero. E há probabilidade zero de encontrá-los no mesmo estado quântico.

Nós deveríamos ficar felizes com isso: é a razão da nossa existência. Toda a base da química reside nesse princípio de que férmions idênticos não podem estar no mesmo estado quântico. Isso força os elétrons do átomo a ocupar posições mais e mais longes do núcleo. Isso os deixa com uma pequena atração aos prótons centrais, liberando-os para outras atividades químicas. Sem o sinal negativo gerado pela mudança de posição dos elétrons, não existiriam estrelas, planetas ou vida.

Então como elétrons em supercondutores formam os CBEs? Em 1956, Leon Cooper demonstrou como elétrons que se movem em um metal podem se juntar em pares e adquirir características de um bóson. Se todos os elétrons de um cristal metálico formarem pares Cooper, esses bósons iram se juntar, formando uma partícula gigante – um CBE.

A maior consequência disso é a inexistência de resistência elétrica. Em metais comuns, a resistência acontece devido a elétrons que se deparam com os íons do objeto. Mas uma vez que ele se torna um supercondutor, o par de elétrons se condensa no estado mais baixo possível. Assim não há energia dissipada, e uma vez que os pares Cooper foram feitos para fluir em uma corrente elétrica, eles simplesmente continuam correndo. A única forma de atrapalhar a supercondutividade sem aumentar a temperatura é adicionando energia de outra forma, como um campo magnético muito forte.

Apesar dos superfluidos e condutores serem bem bizarros, eles não são o limite do mundo quântico. “Existe ainda outro nível de complexidade”, comenta Ed Hinds. Ele vem quando se brinca abaixo de -272,15 Celsius e a mais de 25 vezes a pressão atmosférica da Terra. Nesse ponto o hélio fica sólido – e destrói nossas noções de solidez. Nas condições certas, você pode fazer sólidos atravessarem um o outro, como fantasmas.

Esse efeito foi observado pela primeira vez em 2004, por Moses Chan e Eunseong Kim, da Pensilvânia. Eles colocaram o hélio sólido em uma cuba que podia se mover rapidamente para frente e para traz, gerando oscilações no sólido. Eles observaram uma frequência vibracional ressonante, interpretada como indicativo de que havia dois sólidos ali, passando um pelo outro.

Obviamente, os dois sólidos não combinam com nossas definições tradicionais. Um deles era “vago”, criado quando os átomos de hélio ficavam livres do entrelaçamento que forma o hélio sólido. Esses espaços têm as propriedades de uma partícula real – são tão reais que seus estados quânticos podem se unir para formar um CBE. O hélio sólido também é um CBE, e são esses dois condensados que se atravessam.

As observações de Chan e Kim ainda são um pouco controversas; alguns pesquisadores pensam que existe uma explicação melhor que envolve deformações e defeitos na malha do hélio. “Existe muita atividade, várias noções teóricas e experimentos, mas nenhum consenso”, comenta o cientista Robert Hallock.

Não por menos, o simples fato de ser possível criar sólidos que não são exatamente sólidos mostra como as “supercoisas” são interessantes. E tudo, desde os seres humanos até fenômenos estranhos a baixas temperaturas, é derivado do fato de que existem dois tipos de partículas: as que gostam de socializar, e as que não gostam. Soa familiar? Talvez o mundo quântico não seja tão diferente de nós.

Superátomos extremos

Superfluidos, supercondutores e supersólidos têm seu comportamento bizarro devido à formação de algum tipo de superátomo dentro deles, o já comentado Condensado de Bose-Einstein (CBE).

Mas seria possível criar tal estado fora de um líquido ou sólido? Levou muitos anos de pesquisa, mas uma equipe do Colorado conseguiu, em 1995, transformar um gás de rubídio em CBE, o estado quântico mais baixo possível. Pelo feito, os líderes da equipe, Carl Wieman e Eric Cornell, em conjunto com o pesquisador Wolfgang Ketterle, ganharam o Nobel de Física em 2001.

Quando Wieman e Cornell fizeram o condensado, o laboratório se tornou brevemente o local mais frio do universo: cerca de 20 nano Celsius abaixo do zero absoluto.

No ano passado, o telescópio de raios-X Chandra descobriu que o núcleo de uma estrela de nêutrons, chamada de Cassiopeia A, há 11 mil anos-luz da Terra, é um superfluido. Uma colher de chá do material de uma estrela desse tipo pesa seis bilhões de toneladas, e a pressão das camadas externas é suficiente para tornar o núcleo um CBE. E, apesar do nome, o centro de uma estrela de nêutrons não é formado exclusivamente por nêutrons: ele contém uma porção de prótons também, que formam um CBE. Você pode enxergar esse fenômeno como um superfluido ou, devido aos prótons que carregam cargas elétricas, um supercondutor. [NewScientist]

2 comentários

  • Addans Layon:

    excelente matéria…
    sem mais !

  • pgmparedes:

    Bernardo,
    “o laboratório se tornou brevemente o local mais frio do universo: cerca de 20 nano Celsius abaixo do zero absoluto.”

    É, na verdade:
    “their lab briefly became home to the coldest place in the universe, just 20 nanokelvin above absolute zero.”

    Ou seja: cerca de 20 nanokelvin acima do zero absoluto.

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