Oxigênio [Crônica]
O autor Mustafá Ali Kanso cedeu gentilmente o conto inédito Herdeiro dos Ventos para publicação aqui no HypeScience. Ao final descubra como concorrer ao mais novo lançamento do Autor: o livro A Cor da Tempestade com lançamento programado para a quinta-feira.
Numa dessas pontes aéreas congestionadas, tomei o vôo 242, mesmo com o anúncio de tempestade. Por essas urgências profissionais era imperativo pegar aquele avião.
É fácil intuir que tive problemas.
Já nos primeiros minutos de vôo a aeronave foi sacudida por fortes ventos laterais. Uma coluna sólida de nuvens cor chumbo dominou o horizonte. Raios e relâmpagos acompanhavam a chuva torrencial.
Percebi a tentativa do piloto em realizar um vôo acima da tempestade, no entanto seus esforços para ganhar altura esbarraram em algum problema técnico que fizeram da tentativa de ascenção apenas o início de uma queda abrupta.
Ficou evidente a gravidade da situação, quando todas as máscaras de oxigênio caíram em meio à gritaria dos passageiros.
Quantas vezes eu assisti aquela demonstração das comissárias de bordo. A máscara de oxigênio caindo de suas mãos, de uma forma lúdica, quase como um pequeno fantoche sendo sustentado pelas finas cordas.
– Basta trazer ao rosto e respirar normalmente.
Porém naquele instante eu não conseguia me recordar das instruções. Apenas, me vinha à mente o fato perturbador que raramente alguém sobrevivia a um desastre aéreo.
Tragédia que muitas vezes se resume a um ponto negativo nas estatísticas e algumas manchetes nos jornais.
A máscara de oxigênio executava sua dança frenética. O protocolo que compõe as instruções de segurança é muito preciso:
– Basta trazer ao rosto e respirar normalmente.
Imitando aos demais passageiros busquei a máscara e a coloquei. Mas não consegui respirar normalmente. Tinha certeza da tragédia.
O piloto lutou contra a tempestade por longos quarenta minutos e conseguiu finalmente, apesar de toda a turbulência, aterrisar em nosso destino num pouso impecável.
Felizmente o vôo 242 não se transformou em estatística e nem ganhou manchete em nenhum jornal.
Não existe nada de extraordinário num pouso perfeito. Mesmo com um tempo péssimo e com problemas mecânicos. Para indiferença generalizada do cotidiano o piloto apenas cumprira com sua obrigação. Como se não existisse heroísmo algum em brigar contra os elementos e colocar no ar e depois em terra sucessivamente, dia após dia, um milagre da tecnologia.
Todos saíram da aeronave com o alívio transbordando no olhar. Risos nervosos confirmaram que não fôra daquela vez. Mesmo as lágrimas dos mais sensíveis não se caracterizavam como testemunhas filedignas daquela sensação de euforia.
Entendi naquele momento de desembarque que todos celebravam inconscientemente o fato de estarem vivos. E que isto bastava.
No entanto, todos retornariam ao burburinho da vida rotineira. Voltariam a ser parte do intricado mecanismo que dava sentido às suas existências e de tão entretidos se esqueceriam das lições aprendidas naquele dia.
Recordei desse episódio várias vezes. Focando especialmente a precisão das instruções de segurança quando ainda meu coração trepidava com o mau tempo e a máscara de oxigênio me convidava a respirar.
Dei por conta, a posteriori, da instrução seguinte:
“Se você acompanhar uma criança ou uma pessoa incapacitada deverá primeiro colocar a máscara em você e depois na outra pessoa”.
É assim mesmo?
– Primeiro você, depois os outros?
Exatamente.
Na análise superficial, considerei puro egoísmo.
No entanto, hoje me assalta essa constatação, lógica, severa e fria.
Devo dar atenção à prioridade das coisas.
Como fornecerei oxigênio às pessoas que dependem de mim se antes eu morrer asfixiado?
É mais que uma simples metáfora.
Foi essa a constatação que fez muita diferença nas decisões que tomaria a seguir.
Entendi que por muito tempo em minha vida estava me negando o oxigênio primordial para enfrentar os momentos de contingência. Por isso sufocava. Por isso lentamente caminhava para inconsciência.
Aprendi às duras penas, naqueles momentos decisivos do vôo 242, que é imperativo primeiro fornecer oxigênio para mim mesmo, para depois disponibilizá-lo à família, aos amigos, ao trabalho.
Sem egoísmo, apenas seguindo uma simples instrução de segurança.
Quem está morrendo asfixiado não pode ser fonte de vida.
Foi muito difícil entender que só posso prodigalizar aos outros com generosidade o que já conquistei primeiro para mim mesmo. [Foto]
CONCORRA A UM EXEMPLAR DO NOVO LANÇAMENTO DE MUSTAFÁ
Mustafá Ali Kanso é escritor, professor, engenheiro químico, empresário da mídia educacional e divulgador científico em programas culturais da TV.
Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.
Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” juntamente com obras de Lygia Fagundes Telles foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”
Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.
3 comentários
A Lei da sobrevivência deve imperar em todos os reinos vegetais e animais.
!!!!!!!!!!???????????
NINGUÉM PODE DAR O QUE NÃO TEM!
QUANDO TENTAMOS DAR O QUE NÃO TEMOS … ESTAMOS FINGINDO.
E COMO FINGIMOS. EDUCADAMENTE.
DE ONDE SE TIRA MAIS DO QUE SE PÕE … ACABA. E COMO TIRAMOS. QUANTO MAIS TEMOS, MAIS TIRAMOS.
QUANDO O PÃO BASTA PARA TODOS … SOMOS EDUCADOS, SENÃO ABANDIDADOS.
ACONTECE QUE TODOS NÓS, NA NOSSA IGNORÂNCIA INCONSCIENTE,
NOS JULGAMOS CIVILIZADOS. RETIRE AS LEIS E VERÁ O INFERNO.
INTERPRETAMOS ERRADAMENTE OS PRINCÍPIOS MORAIS COM O OBJETIVO DE NOS PRIVILEGIAR, PARECERMOS BONS. CITAMOS ATÉ EXEMPLOS.
SOMOS DA TERRA E VIEMOS EM PAZ.
COMO É POSSÍVEL SE SOMOS UMA CULTURA GUERREIRA?
FINGIMENTO, FALSIDADE, DISSIMULAÇÃO.
PENSAMOS CAMINHAR EM PAZ.
MAS COM SENTIMENTOS ODIOSOS!
NEM SEQUER SABEMOS DISSO.
ESTAMOS DISPOSTOS A MORRER EM PAZ?
OU ANTES, FAZER A GUERRA …
SOMOS MEIO SANGUE DO MAL, IGNORAMOS ISTO E FAZEMOS INTERPRETAÇÕES ERRÔNEAS.
POBRE QUE SOMOS.
Parabéns,só clicar em gostei é pouco.Ótima reflexão.