Como a ideia de que a vida online não é real pode ser nociva
Você provavelmente já viu fotos da série “Removed”, do artista Eric Pickersgill, que destina-se a evocar a influência isoladora da tecnologia moderna ao retirar digitalmente de fotos celulares e coisas do tipo, deixando as pessoas olhando para o nada. Muita gente compartilhou as fotos na internet, através do Facebook e outras redes sociais, geralmente com comentários do tipo “As pessoas precisam ver isso!”
Não é de hoje que existe este questionamento em relação ao papel dos smartphones e tudo que diz respeito à vida na internet como protagonistas de uma suposta “desumanização” das pessoas. Em setembro, a professora Sherry Turkle, do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT), nos EUA, argumentou em uma entrevista que a tecnologia está arruinando a conversação e pode até estar tornando a próxima geração em robôs viciados em telefones incapazes de ter empatia em níveis normais.
Por que as pessoas adoram brigar na internet?
Certamente vale a pena considerar como telefones celulares e mídias sociais dividem nossa atenção e o sucesso destas fotos e opiniões sugere que eles estão batendo em um medo comum. O problema gritante com isso, no entanto, é a presunção de que o fascinante e complexo mundo digital por trás de nossas telas não é real.
Realidade no seu pior
Todo mundo que já se dispôs a escrever algo na internet sabe que o assédio e o ódio que existem nela são muito reais, mas a prevalência da ideia de que a vida na tela é menos autêntica faz com que estas experiências muitas vezes não sejam levadas a sério.
A jornalista Julianne Ross, editora do portal MTV News, relata em um artigo as ameaças que recebeu por e-mail após publicar um texto sobre um grupo anti-feminista. “A primeira mensagem tinha como assunto “ser estuprada” e estava entre um convite de festa de aniversário e uma receita da minha mãe na minha caixa de entrada”, relata. “Eu abri para ler que eu merecia ter minha vagina “violentamente mutilada” e que a pessoa queria me estuprar pessoalmente. Além disso, o texto dizia que “pessoas como eu” iriam ser removidas da nossa sociedade”.
Infelizmente, a polícia não tinha ideia do que fazer. Eles rapidamente deram o caso como encerrado. “Minha busca por justiça off-line acabou quase tão rapidamente quanto começou”, afirma Ross. “É assim para a maioria das pessoas. Assédio digital normalmente não leva a investigações rigorosas, processo legal, nem mesmo uma básica simpatia, em grande parte por causa dessa noção persistente de que o que acontece na internet não conta – uma noção reforçada, sem dúvida, por afirmações de que a tecnologia está destruindo a interação humana”.
A vida na internet e o Conflito de gerações
As pessoas que têm hoje por volta de seus vinte e poucos anos fazem parte de uma geração presa entre as pessoas que passaram seus anos de formação sem qualquer mídia social e pessoas que não vivem sem estar conectadas com outras pessoas ou lugares nas palmas de suas mãos. Mas, além de assumir que a proximidade física é inerentemente mais significativa do que o que quer que esteja acontecendo on-line ( e não é), grande parte desta crescente inquietação denuncia uma falta de fluência digital; os “adultos” , por assim dizer, aqueles que não conviveram com alguma coisa parecida com as redes sociais em seus anos de formação, apresentam uma grande dificuldade em entender o que realmente está acontecendo nos celulares dos adolescentes.
Quem defende essa postura de que a tecnologia está acabando com as relações humanas subestima as capacidades de nossas novas mídias. A mensagem das fotos de Pickersgill é clara: enquanto supostamente nos mantemos conectados, a tecnologia na verdade só nos separa. Turkle diz que a tecnologia nos afasta de conversas que “permitem-nos estar totalmente presentes e vulneráveis”, onde “a empatia e a intimidade floreiam” e “nós aprendemos quem somos”.
Mas, na verdade, nossas tecnologias permitem uma amplitude de pistas emocionais. Fora o fato delas permitirem que pessoas se conectem com membros distantes da família ou com amigos há muito perdidos, há o fato de que as coisas que usamos para falar uns com os outros hoje têm sua própria gramática tonal: pequenas mudanças na pontuação podem transmitir inflexões muito diferentes; poucas coisas correspondem à agonia e à emoção de ver uma paquera respondendo uma mensagem; uma conversa em algum chat é inerentemente diferente de uma menção no Twitter, que é diferente de um post no Facebook, um “like” no Instagram, um snapchat, ou um screenshot de um snapchat. Um estudo recente do Centro de Pesquisa PEW, nos EUA, descobriu o óbvio: espaços on-line “desempenham um papel importante na forma como os adolescentes flertam, atraem e comunicam-se com potenciais e atuais parceiros”.
O Facebook, a inveja e a depressão
Argumentos que apontam as diversas tecnologias que temos à disposição hoje como uma coisa só, que permite apenas uma forma rasa de comunicação, ignoram o fato de que as interações digitais podem ser sutis e íntimas, e às vezes bastante prejudiciais.
Ataques de gênero
Uma espécie de cyber-sinestesia caracteriza a comunicação moderna, e isso só vai ficar mais complexo com o tempo. Aqueles que “aprenderam quem são” na ausência deste alfabeto em constante expansão pode achar que ele é menos penetrável, como alguém que aprendeu uma língua mais tarde na vida e nunca capta realmente as expressões de um nativo.
Em um mundo onde as mulheres em particular são muitas vezes aterrorizadas a ponto de desistir de usar plataformas que são essenciais para a vida moderna (para não mencionar a organização feminista), este não é um ponto acadêmico. As mulheres, que têm sido quem mais vocaliza a respeito do assédio cibernético e estão sujeitas a um abuso relacionado diretamente com o gênero, enfrentam graves consequências por se posicionarem online – desde serem forçadas a fugir de suas casas, ao cancelamento de eventos em que deveriam falar (e a perda de renda acarretada com isso), até simplesmente ter que desperdiçar um valioso trabalho mental ao lidar com um ataque de ódio.
Quase metade dos entrevistados adolescentes em uma recente pesquisa global feita pelo grupo YouGov afirmou que o cyberbullying é um problema maior do que o abuso de drogas, e mais da metade sentiu que essa forma de assédio era “pior do que o bullying cara a cara”. A mesma pesquisa aponta que um em cada cinco adolescentes já sofreu assédio virtual. No entanto, o conselho mais comum para qualquer um que lide com o assédio é dizer para não “alimentar os trolls”, ou que quem está por trás disso nunca iria fazer ou dizer estas coisas na vida “real”, e, assim, as suas ameaças e intimidações não importam. É muito comum ouvir a expressão “cão que ladra não morde”, ou algo parecido, em situações como esta.
Negar o assédio desta forma apenas nega sua dinâmica discriminatória, as estruturas de poder que se destinam a reforçar sua validade e a resposta emocional e humana das vítimas. “Estas mensagens são um ataque implacável à carreira das mulheres, à sua estrutura psicológica e sua liberdade de viver online”, escreveu a jornalista Amanda Hess em um artigo para a revista Pacific Standart sobre a sua própria experiência extensiva com abuso digital. (Um comentarista twittou para ela, “Eu vou te procurar, e quando eu achar, eu vou estuprá-la e remover a sua cabeça”. Um oficial de polícia mais tarde perguntou a ela: “O que é Twitter?”)
Michelle Goldberg, do Washington Post, reforça este sentimento, dizendo que este “incessante, violento, sarcástico e sexualizado ódio” dirigido às mulheres online tem “extraído um preço psíquico exorbitante” de autoras mulheres que “destrói a moral e leva ao esgotamento.” O fato da tecnologia ter se tornado uma ferramenta inestimável para a organização em torno dos direitos das mulheres faz com que seu potencial exclusivo o mais impactante; algumas mulheres entrevistadas por Goldberg tinham parado ou reduzido seus textos sobre temas como cuidados de saúde reprodutiva e estupro.
Internet sem ódio
“Pode parecer contra-intuitivo exaltar a tecnologia enfatizando as coisas ruins que ela permite que as pessoas façam umas às outras. Mas, por mais que os aspectos mais sombrios da comunicação digital possam de fato surgir porque as pessoas não estão sempre frente a frente quando falam, eles estão provavelmente encorajados por suposições de que o que fazemos através da tecnologia é, por natureza, menos válido do que qualquer coisa que fazemos em pessoa”, argumenta Ross. “Isto é, talvez o assédio não floresça apenas porque os riscos realmente são mais baixos, mas também porque enxergar a comunicação digital como algo insignificante incentiva as pessoas a acreditar que isso seja verdade”.
Internet e redes sociais podem estar “mudando” nossos cérebros
Será que menos pessoas se envolveriam em abuso online se tecnologia fosse tratada com respeito suficiente como meio para justificar a gravidade emocional – e as consequências jurídicas – para as coisas que dizemos através delas? É certamente possível. Tal como são, as penalidades leves significam que funcionários têm pouco incentivo para levar a sério um crime online, e muito menos dedicar recursos para sua investigação e julgamento.
Nós nunca poderemos fazer da Internet um lugar melhor e mais seguro – e sem tanto ódio, seja contra mulheres ou contra qualquer grupo – até que a aceitemos como parte legítima da nossa vida. A revolução tecnológica está ficando cada vez mais incorporada em nossas vidas, e se queremos abraçar plenamente toda a beleza que ela permite (e há muitas coisas boas), temos de reconhecer – e lutar para limitar – a dor que ela pode causar . Isso significa que, conforme nossas invenções abrem portas para novas fronteiras de interação humana, temos de avançar com a abertura e humildade suficientes para entender que os lugares que interagimos online são reais. [Wired]
1 comentário
Não podemos culpar ferramentas pelo seu mau uso, nem acreditar que as pessoas seriam + expressivas e viveriam em comunhão sem tecnololgia.