Infame tribo “egoísta” de Uganda é incompreendida há quase 40 anos

Por , em 30.06.2020

Nos anos 1960, o antropólogo Colin Turnbull publicou um livro chamado “The Mountain People” no qual descrevia o povo Ik como “pouco amigável”, “pouco caridoso” e “malvado”, apelidando-o de “povo sem amor”.

Que horror, não é mesmo? Exceto que os Ik podem ter levado a fama sem deitar-se na cama.

Agora, uma nova pesquisa de colaboração internacional decidiu corrigir essa suposição caricata, sugerindo que esse pequeno grupo étnico não é nem um grama mais egoísta do que eu e você e o resto do mundo.

Os pesquisadores defendem que, ao invés do Ik ser uma cultura individualista, talvez Turnbull apenas tenha pegado o povo em um péssimo momento, ou seja, durante um período de fome extrema devido à falta de recursos.

Um artigo sobre o estudo, que reuniu cientistas da Universidade Baylor (EUA), Universidade Estadual do Arizona (EUA), Universidade Livre de Amsterdã (Holanda) e Universidade Estadual de Nova Jersey (EUA), foi publicado na revista científica Evolutionary Human Sciences.

Povo Ik

O povo Ik é uma pequena comunidade montanhosa da região de Karamoja, no nordeste da Uganda.

De acordo com o portal do Kidepo National Park, na Uganda, “Ik” significa “os primeiros a migrarem ou a chegarem aqui”, sendo que o povo veio da Etiópia para Karamoja.

Infelizmente, esse grupo étnico tem poucas posses ou riqueza em relação a outros povos locais. Além disso, é mais pacífico. Isso significa que suas casas têm um histórico de serem invadidas e roubadas.

Dito isto, o Ik é um povo bom em caçar grandes animais, e em coletar e cultivar comida. Crianças se tornam independentes com cerca de 13 anos, e já podem se casar e ter suas próprias moradias.

Vale observar que, nesta cultura, promiscuidade é sujeita a castigos, incesto é tabu e adultério é punível com morte.

O novo estudo

Em 2016, a antropóloga Cathryn Townsend obteve permissão para viver com o povo Ik. Lá, ela afirmou ter observado vários atos de generosidade, incluindo o uso do ditado “tomora marang”, que significa “é bom compartilhar”.

Townsend usou o “jogo do ditador”, um jogo experimental muito conhecido no qual um jogador distribui dinheiro para outros sob diversos parâmetros, para medir a generosidade do grupo ugandês.

A pesquisadora e sua equipe concluíram que as escolhas do povo Ik foram bastante “normais” em comparação com a de outras sociedades. Ou seja, eles não eram menos generosos do que as centenas de outras pessoas ao redor do mundo que jogaram o mesmo jogo.

Inclusive, existe um espírito na cultura Ik chamado “kíʝáwika” que monitora e pune comportamento egoísta; quando este personagem foi adicionado ao jogo, as pessoas se tornaram ainda mais generosas.

Em seu artigo, os cientistas escreveram que “as normas cooperativas são resilientes” entre esse povo, e que o “consenso entre os estudiosos” de que a cooperação humana é apoiada por essa cultura “pode permanecer intacto”.

Ao entrevistar indivíduos Ik, Townsend descobriu que itens como “comida, bebida, terra, roupas, ferramentas, trabalho, notícias, companheirismo, descobertas e amor” são todos considerados compartilháveis, bem como “aspectos menos agradáveis da vida, como problemas e luto pelos mortos (e os custos materiais associados)”.

A antropóloga notou ainda que, mesmo durante temporadas de fome, quando os campos ficam improdutivos por falta de chuva, os Ik continuam a compartilhar alimentos armazenados e qualquer outra coisa que conseguem colher.

Implicações da descoberta

A pesquisa liderada por Townsend faz parte do “The Human Generosity Project” (em tradução literal, “Projeto de Generosidade Humana”), um esforço para compreender melhor como seres humanos cooperam e compartilham coisas ao redor do mundo.

Segundo um dos autores do novo estudo, o antropólogo Lee Cronk, uma das implicações desse trabalho é que “sempre devemos considerar a possibilidade de outros fatores que não a cultura, incluindo, mas não apenas, a fome, moldarem o comportamento humano”.

Em outras palavras, não podemos mais afirmar que o povo Ik é culturalmente egoísta, como fez Turnbull. No entanto, é possível que comportamentos egoístas sejam observados como uma consequência de condições extremas, como a inanição.

Contestando Turnbull

Essa não é primeira vez que uma equipe de pesquisa contesta os achados de Turnbull. A partir de suas notas sobre a comunidade feitas entre 1964 e 1967, ele afirmou que os Ik “cultivavam o individualismo até o ápice”, abandonando crianças e roubando comida dos idosos. Turnbull chegou a defender que eles fossem dispersos e sua cultura destruída.

Ao longo dos anos, porém, diversos cientistas criticaram seu livro e sua ideia de que esse povo não tem preocupação com ou amor por sua família e suas crianças.

Por exemplo, o antropólogo Bernd Heine, que viveu entre o povo Ik nos anos 1980, escreveu que “o relato de Turnbull estava em desacordo” com a maioria de suas observações, de forma que às vezes ele tinha a impressão de “estar lidando com pessoas totalmente diferentes”.

Atualmente, os cientistas pensam que alguns comportamentos notados por Turnbull foram apenas um subproduto da fome e não uma adaptação cultural à escassez.

“O erro mais fundamental de Turnbull pode ter sido assumir que todo o comportamento Ik, juntamente com todo o comportamento humano de maneira mais ampla, é mais bem explicado com referência à cultura”, argumentaram os pesquisadores do novo estudo em seu artigo.

O homem é bom, as condições sociais o corrompem

A nova pesquisa parece apontar para uma natureza humana generosa, tanto nos Ik como talvez em todo o mundo. As condições sociais de um povo, no entanto, podem afetar seu comportamento.

“Se o estudo de caso dos Ik pode nos dizer algo sobre cultura é que, mesmo quando as convenções de generosidade desmoronam devido a condições extremamente estressantes, é possível reemergir [destas condições] completamente dentro de 50 anos, como nossas descobertas indicam”, sugeriram os pesquisadores.

Os cientistas argumentam que, desde a fome extrema dos anos 1960, os Ik passaram por outros períodos de escassez, além de uma epidemia de cólera, e parecem ter resistido e continuado como um grupo culturalmente generoso. [ScienceAlert, Kidepo]

Deixe seu comentário!