Você estava lá?

Por , em 23.02.2014

Você estava lá?

Meu colega de redação, o engenheiro eletricista Cesar A. K. Grossmann, mais uma vez me enviou uma ótima sugestão sobre um artigo, pontuando que alguns criacionistas norte-americanos estão ensinando as crianças a perguntarem para os professores de ciência “você estava lá?” cada vez que ele mencionar qualquer coisa que ocorreu há milhões ou bilhões de anos.

Coincidentemente eu já vivi essa situação numa menor escala temporal, quando em uma aula afirmei que a descoberta do fogo caracterizou um passo decisivo para a evolução da sociedade humana.

– Então um aluno me perguntou se eu estava lá.

No momento me pareceu uma piada juvenil.  Alguma insinuação não muito sutil sobre a minha idade.

Mudei de ideia depois que li o artigo do “The New Yorker” indicado por Grossmann “WHY THE ONE APPEALING PART OF CREATIONISM IS WRONG” de autoria do pesquisador Lawrence M. Krauss.

Comecei a refletir que talvez, esse tipo de pergunta — “você estava lá?” —  possa realmente ser uma tendência inspirada nos trabalhos de Ken Ham  fundador do Museu da Criação (The Creation Museum) , em Petersburg , Kentucky (USA) tema principal do referido artigo.

Para que o leitor tenha uma ideia do trabalho de Ham basta citar dois pontos controversos de suas manifestações sobre o criacionismo:

1)      A Terra possui cerca de seis mil anos de idade

2)      O Tyrannosaurus rex e outros dinossauros carnívoros eram realmente vegetarianos e que viveram no Jardim do Éden antes da queda de Adão e Eva.

O núcleo do referido artigo gira em torno do debate “Is creationism a viable model of origins in today’s modern scientific era?” (“Criacionismo é um modelo viável sobre as origens da vida na era científica moderna?”), proposto por Ham e realizado no próprio Museu da Criação com a participação do eminente bacharel em ciências e engenheiro mecânico Bill Nye, um dos divulgadores científicos mais populares da mídia americana, aquele que é carinhosamente chamado “The Science Guy”.

No debate Ken Ham defendeu uma divisão da ciência em dois tipos de prática: a “ciência observacional” e a “ciência histórica”.

A tal “ciência observacional”, que ele admite ser “ciência de verdade,” é realizada nos dias de hoje, por meio da observação, testes, ensaios e conclusões — criando-se a partir de sua metodologia todo um corpo de sólidas evidências que a fundamentam.

Nesse tipo de ciência se inclui a química e a física e obviamente suas aplicações tecnológicas.

Já a tal “ciência histórica” onde ele cataloga astronomia, geologia e biologia evolutiva busca falar sobre o passado e, portanto, não se baseia em “fatos” como a anterior, mas apenas em “suposições” por que afinal ninguém estava lá no passado para “testemunhar” o ocorrido, a não ser Jeová (o deus cristão) como está escrito na bíblia.

Achará razoável tal subdivisão apenas quem desconhecer o que é método científico.

Simplesmente não existe essa distinção entre ciência do presente e ciência do passado.

Como já manifestei nessa coluna diversas vezes — a ciência é muito mais do que um simples depósito de fatos.

É uma poderosa ferramenta na busca pelo conhecimento.

É por meio de um rigoroso método que se testa exaustivamente toda a informação antes que esta seja considerada científica; em seu cerne medular está e estará sempre o seu termo chave que é a evidência.

O rigor do método científico oferece garantia de que tal evidência seja sólida, testável o tempo todo, universal, objetiva e impessoal, ou seja, à prova das opiniões, desejos pessoais ou interferências da autoridade ou do poder.

Quando se afirma, por exemplo, que a velocidade da luz é de 299 792 458 km/s é por que esse valor foi medido e medido várias vezes, por vários cientistas e em várias épocas.

Assim, quem olha para o nascer do sol está obviamente testemunhando um evento do passado, pois a luz que enxergamos leva oito minutos em média para chegar até nós.

E esses cálculos são refeitos incontáveis números de vezes, a tal ponto, que eu como cientista não preciso de uma nave espacial para ir até o sol “testemunhar” o evento para aceitar essa evidência como científica.

Quando observamos por meio de telescópios potentes uma estrela distante 1000 anos-luz da Terra, em verdade estamos observando o passado dessa estrela. Estamos observando eventos ocorridos há mil anos.

Essas informações são submetidas exaustivamente a críticas rigorosas na busca por falhas exatamente como é realizado pelos eventos observados nos laboratórios sob o controle dos químicos e físicos.

Então, essa invenção de uma ciência do presente, baseada em evidências e uma ciência do passado, baseada em opiniões — ou histórias que precisamos acreditar — é simplesmente a apresentação de um atestado de ignorância a respeito do método científico.

Como alguém, por um lado, pode aceitar que a meia-vida de decaimento radioativo do potássio-40 é da ordem de bilhões de anos (uma evidência da Física Nuclear) e depois, por outro lado, afirmar que o planeta Terra tem apenas seis mil anos?

E os bilhões de anos de decaimento do potássio-40 registrados nos estratos geológicos terrestres? Despreza-se esse fato?

Aceita-se uma evidência científica, porém descarta-se outra.

Interessante essa dicotomia, não?

No artigo citado, o autor apresenta outras confrontações:

Neutrinos

Existem subpartículas atômicas, chamadas neutrinos , emitidas pelo sol, como subprodutos do processo de fusão nuclear. Não precisamos acreditar que existem os neutrinos,  eles foram detectados por experimentos da Física Moderna.

O prêmio Nobel Ray Davis e seus colegas ao longo de um período de vinte anos observaram a atividade dos neutrinos solares e essas observações foram e estão sendo confirmadas por vários experimentos até os dias de hoje, fornecendo dados valiosíssimos.

Dados esses que fundamentam a explicação da dinâmica solar e que aponta a necessidade de uma compressão sustentada por quase um milhão de anos para que ocorresse a ignição do hidrogênio. Uma evidência matemática.

Não.

Essa evidência é desprezada apesar de se aceitar a da existência dos neutrinos e sua dinâmica na fusão nuclear.

Código genético

A bioquímica mapeou o código genético humano – evidência aceita.

O ser humano apresenta 23 pares de cromossomos. Os símios (grandes macacos) apresentam 24 – evidência aceita.

A previsão de uma relação genética entre os símios e os seres humanos através de um ancestral comum aponta que, ao longo da evolução humana, dois pares de cromossomos do macaco se fundiram para gerar apenas um no ser humano, por essa razão 24 pares se transformaram em 23.

E para o desespero de muitos criacionistas nesse par de cromossomos resultante foi encontrado vestígios dos pares originais presentes em nossos primos macacos. Coisa que a bioquímica já comprovou por meio de experimentos e experimentos repetidos várias vezes, por vários cientistas, em várias ocasiões.

Porém essa evidência é rejeitada.

Será por que vem a corroborar a evolução?

Deriva Continental

A movimentação das placas tectônicas está apoiada em evidências, com medidas precisas realizadas ano a ano.

Usando as equações da física previu-se a posição dos continentes no tempo geológico na ordem de milhões anos. Tais evidências, no entanto são desprezadas.

Porém as mesmas equações quando são usadas para se prever no tempo a posição de peças nas esteiras de linhas de montagem são daí aceitas.

E por aí vai.

Para evitar discussões circulares é importante frisar:

Não existem duas ciências: uma do presente e outra do passado. Isso é apenas um recurso de retórica.

O conceito científico não depende da fé, opinião ou de testemunhos de quem quer que seja para funcionar.

O conceito científico não depende de argumentos de autoridade.

Quem afirmar isso está prestando um desserviço à humanidade e apostando no obscurantismo mais uma vez.

Mesmo respeitando a crença daqueles que me afirmam que a fé move montanhas eu como químico tenho posse de evidências que apontam o funcionamento mais efetivo do TNT e da dinamite.

E em nenhum momento da minha vida profissional foi necessário testemunhar de perto a explosão de uma frente de demolição para então acreditar em seu funcionamento.

E o TNT e a dinamite continuarão explodindo mesmo sem a minha crença, anuência ou testemunho.

Para concluir, vou reforçar o que  já manifestei aqui em diversas oportunidades:

— Todo o ser humano tem o direito de acreditar em um deus, em vários ou em nenhum;

— Além da ciência, a tomada de realidade de cada um pode ser realizada valendo-se do poder do mito, do dogma da religião, do pensamento em filosofia, da crença no senso comum e/ou  a partir da estética da arte.

É a liberdade que deve nortear a escolha que cada um faz do viés pelo qual quer olhar o mundo.

Nunca o exercício do obscurantismo, que pelo uso de uma bela retórica, embaralha conceitos fundamentais tentando invalidar ferramentas indispensáveis para a garantia da sobrevivência de nossa espécie que é o espírito crítico, a lógica e, evidentemente, o bom senso.

-o-

 

[Imagem: Fogo por Gustty]
[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

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25 comentários

  • Elio Roldan Anderson:

    A Bíblia não diz que a terra tem apenas seis mil anos.
    Em Gênesis 1, diz que “No princípio Deus criou o céu e a terra…” Quanto tempo levou?
    Quando cita dia primeiro, dia segundo, não se refere a dias, propriamente, pois nã havia dia ou noite, ainda, mas sim a eras.
    O Jardim do Eden era um lugar criado por Deus na Terra, único. Quanto tempo o ser humano viveu ali? Após a queda, Adão e a mulher, foram expulsos do Eden, e foi colocado um anjo para impedir que voltassem lá.

    • Elio Roldan Anderson:

      Querer limitar esse tempo a seis mil anos é forçar a barra.

    • Cesar Grossmann:

      Há quem diga que forçar a barra é transformar um dia em uma era. Percebe que é uma questão de interpretação, e cada um interpreta a seu gosto?

  • Hugo:

    “tenho posse de evidências que apontam o funcionamento mais efetivo do TNT e da dinamite”

    Adorei a frase rs.

    Gostaria de fazer uma observação em relação à fé: apesar de ser ateu e não ter este tipo de fé, acredito profundamente na sua função no emocional de uma pessoa ou grupo e nas “montanhas” que isso pode mover, mesmo que seja uma espécie de placebo.

  • Marcelo Ribeiro:

    Bom lembrar deste manifesto sobre o criacionismo redigido por cientistas brasileiros.

  • Marcelo Ribeiro:

    Brilhantemente esclarecedor.

    É importante ressaltar que todas estas evidências acumuladas não são simplesmente confirmadas e aceitas, mas são sistematicamente avaliadas por pares. Isto é, outros cientistas, sem ligações com aqueles que realizaram o trabalho, batem o martelo avaliando se o resultado é ou não publicável. Lembrando que a maioria dos artigos científicos é recusada ou fica com revisões pendentes na primeira vez que é submetida para avaliação e publicação em uma revista científica.

  • Silas:

    Os criacionistas e o seu ‘deus das lacunas’. O que mais eles vão fazer com nossas crianças pra alimentar uma crença sem fundamentos?

  • Je:

    Alguns ateus gostam desse tipo de pergunta. “Você estava lá?”

    • Marcelo Ribeiro:

      O termo tem diversas aplicações, mas a dos criacionistas é falaciosa quando aplicada a ciência. Não sei como os ateus usam, mas se é para mostrar ceticismo frente aos supostos milagres relatados na bíblia “estar lá”, seria a maneira mais concreta de alguém acreditar já que não existe nenhuma evidência concreta de que realmente aconteceram.

    • Je:

      É…Marcelo a questão é falaciosa em qualquer assunto em que um dos lados não tem o que falar, assim apela para “raciocínios capciosos”.

    • Cesar Grossmann:

      Acho que é só para mostrar o quão pouco críticos são alguns “céticos” religiosos. Questionam a TSE na base do “ninguém estava lá para ver”, mas aceitam tudo que está escrito em um livro, mesmo quando ele fala de coisas que supostamente ninguém teria presenciado.

      Na real, não funciona, por que os tais “céticos” acreditam piamente em uma origem sobrenatural para o texto que eles tem como verdade absoluta.

    • Walter Paixão:

      Raciocínios capciosos Je ?
      Por favor, releia a matéria no trecho que segue:

      “O rigor do método científico oferece garantia de que tal evidência seja sólida, testável o tempo todo, universal, objetiva e impessoal, ou seja, à prova das opiniões, desejos pessoais ou interferências da autoridade ou do poder.”

      O que há de capcioso nesse raciocínio?

    • Je:

      Walter, meu comentário não é quanto ao conteúdo da matéria e sim referente ao comentário do Marcelo logo após ao meu primeiro comentário.
      Leia a partir de meu primeiro comentário e entendera.
      É isso.

  • Walter Paixão:

    Matéria sensacional…!
    Uma bela visão que mostra que a ciência não cria argumentos para desmentir religiões. Ela simplesmente analisa os fatos, calcula, testa os resultados e aponta a explicação. Inerente a opiniões e autoridades. Simplesmente magnífico!

  • Cesar Grossmann:

    É notável que os criacionistas NÃO PRODUZEM NENHUM TRABALHO CIENTÍFICO demonstrando suas hipóteses. Os criacionistas literalistas bíblicos tem como prova a Bíblia, ou seja, eles acreditam que alguma coisa é verdade apenas por fé, não por evidência, e por isto tentam provar desesperadamente que a ciência é uma questão de fé, também. Por isto tentam desqualificar as evidências de todas as formas possíveis.

    • D:

      Uma das desculpas preferidas é aquela em que a maioria afirma não acreditar ser possível que toda a complexidade atual tenha se desenvolvido sozinha, sem intervenção inteligente ou divina.

      Daí esquecem com uma facilidade incrível de usar a mesma lógica para perguntar de onde veio essa inteligência ou deus 🙂

    • Marcelo Ribeiro:

      E atribuir a uma divindade é usa saída fácil que bloqueia que as investigações continuem sendo feitas.

    • Rossana:

      E qual a necessidade de elaborar um trabalho científico para provar o criacionismo?
      As evidências científicas que não estão de acordo com a Bíblia são consideradas invàlidas, então porque haveriam de procurar na ciência “falsa” provas do criacionismo?

    • Walter Paixão:

      Pessoal…

      O que os cientistas buscam são respostas para as coisas. Então tudo que surge com relação a doenças, eventos da natureza, eventos cósmicos e assim por diante, despertam a curiosidade dos cientistas. Que por sua vez utilizam de conceitos e métodos já conhecidos e comprovados para explicar as mais novas curiosidades.

      Os cientistas não ficam buscando evidencias contra as religiões, eles simplesmente procuram explicações para tudo que surge, sem implicar um condição de fé.

    • Cesar Grossmann:

      Exatamente, Rossana. Ao mesmo tempo que chamam as descobertas científicas de fraudes, também procuram a confirmação da ciência para suas afirmações.

      Coerência não é o forte desta gente…

  • Myselfa:

    Não sei bem porquê mas ler seus artigos fazem-me sentir um pouco mais burra -.-”
    Contudo, tenho de admitir que entendo e concordo com o seu ponto de vista, independentemente das nossas crenças, até chega a ser ofensivo que factos científicos que exigiram tanto tempo, esforço e dediação para serem aceites serem desprezados por “não estarmos là a ver” se assim fosse nunca evoluiriamos o conhecimento científico é passado por todos nós e é melhorado, o que antigamente era uma teoriazinha hoje é…

  • altfreedom:

    Olá, o que seria o espírito crítico?

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