Mudando o foco

Por , em 11.05.2014

Mudando o foco – A arte de construir interpretações

Como vimos em nosso artigo da semana passada o grande Francis Bacon — o pai da ciência moderna — preconiza a existência de distorções em nossa concepção da realidade evidenciando que o mundo não é exatamente da maneira como nós o vemos ou o interpretamos.

Também apontamos que os principais ruídos que distorcem nossa tomada de realidade surgem de nossa subjetividade intrínseca, fundamentada muitas vezes em nosso querer, em nossos temores, em nossas crenças e preconceitos;

— No entanto, também poderia ser fundamentada em nosso conhecimento.

Disso resulta o conceito de episteme, que derivado do termo  grego “epistámenos” cuja conjugação “epistasthai”, quer significar  segundo Heidegger  “o  ato de entender”, “de tornar claro” ou “de desvendar” a partir da expressão: colocar-se em pé diante do universo para entende-lo, decifrá-lo, desvendá-lo.

E esse “colocar-se em pé”, nos oferece numa figura de linguagem, a necessidade de nos colocarmos retos e equilibrados perante o mundo — sem desvios — como sendo a primeira condição para construirmos essa interpretação fiel do nosso mundo, como sendo a mais isenta possível.

Mas como fazer isso?

Como fazemos para interpretar o universo da forma mais próxima da verdade. Com a maior isenção?

Se é que essa tarefa seja virtualmente possível?

Apresentamos outro conceito importantíssimo.  Também emprestado da terminologia grega:

— Hermenêutica.

No dicionário Aurélio a hermenêutica é definida como sendo  “interpretação do sentido das palavras; interpretação dos textos sagrados; arte de interpretar leis”.

O termo tem sua etimologia oriunda do mito do deus Hermes que como mensageiro dos demais deuses do Olimpo, efetuava essa sagrada tarefa, primeiro interpretando a mensagem para depois transmiti-la de uma forma que os homens pudessem entendê-la.

Do vocábulo “Hermeneuo” que significa explicar, interpretar, traduzir temos, portanto, a  hermenêutica, que segundo Roy Zuck , seria a arte e a ciência de interpretação.

Numa conceituação simplista podemos observar várias formas ou tipos de hermenêutica em prática, desde a religiosa — como a usada na interpretação dos textos bíblicos — até a jurídica —  aquela pautada, como já mencionamos, na interpretação das leis.

Queria, no entanto, destacar o termo em sua conotação ontológica, no sentido mais geral e contemporâneo cunhado por dois gênios: Nietzsche e Heidegger — seus legítimos fundadores:

A interpretação da própria realidade.

Ou numa expressão mais palatável:

A nossa leitura de mundo.

Ora, recordando aquela clássica dicotomia apresentada por Descartes: o mundo dos fenômenos (aquele externo à minha psicologia)  versus o mundo das sensações (aquele interno à minha psicologia) podemos intuir  a existência de um mundo das interpretações: uma interface que torne inteligível as coisas do universo e permita essa tomada da realidade,

Numa imagem, temos o mapa versus o território.

Enquanto o território é a realidade em si mesma, com todas as suas nuances, o mapa é o nosso episteme, ou seja, a nossa interpretação ou entendimento dessa realidade.

Consequentemente nossa hermenêutica é a forma como construímos esse mapa, em outras palavras, a hermenêutica é a nossa técnica cartográfica.

Quando mais refinada for nossa técnica, mas preciso e confiável será o nosso mapa. Melhor e mais confiável será nossa interpretação da realidade.

Nesse, e também nos próximos artigos, me proponho a discorrer sobre algumas técnicas que julgo úteis na construção dessa tomada de realidade.

A primeira delas já citada no artigo passado é a falsa dicotomia confiança X desconfiança.

Como manifestei na ocasião usando as palavras de André Carneiro:

— A desconfiança é uma lente torta, ao mesmo tempo, que amplifica — distorce.

Porém como conseguiremos confiar em nós mesmos e ainda naqueles que nos cercam?

A impressão que se dá numa primeira avaliação é que a sociedade está se desmoronando e que nada e nem ninguém merece nossa confiança.

Nem nós mesmos.

Isso porque todos os sábados eu prometo que vou começar o regime na segunda-feira. Sempre me culpo por estourar repetidamente meus cartões de créditos em todo final de ano, e por aí vai.

No fundo eu não quero controlar minhas despesas.  E também não quero emagrecer.

Eu quero é ser emagrecido.

Mas isso já será assunto para um artigo vindouro.

O que eu quero manifestar é que quando eu perco a confiança em mim mesmo e na minha capacidade de resolver os meus problemas eu fico à mercê de impostores que querem “me vender” soluções instantâneas.

Por isso proliferam ideologias e misticismos variados nos momentos de crise.

Uma boa parcela da população humana sonha com essas soluções milagrosas e saídas mágicas — principalmente aquelas soluções e saídas que não exigem nem um grama de esforço individual — talvez apenas uma módica contribuição monetária para o caixinha da instituição milagreira.

Eu contraponho esses milagres ideológicos com a pontuação de uma entre tantas obviedades que já apresentei aqui.

— Eu tenho que resgatar a confiança em mim mesmo.

Como?

Obviamente me capacitando.

Buscando o conhecimento.

E muito mais que isso.

Colocando esse conhecimento em prática. Não me detendo na teoria.

Se o mundo está de um jeito torto, talvez eu possa endireita-lo um pouquinho.

Começando por mim.

Como?

Nada mirabolante.

Apenas o óbvio:

Vou começar a revolução mundial simplesmente arrumando o meu quarto. Acordando cedo. Respeitando as leis de trânsito. Chegando no horário.  Não jogando lixo nas ruas, sendo educado.

Por exemplo,

Eu decido acordar mais cedo para ir para o trabalho e simplesmente faço isso.

Ora, se eu dirigir para o trabalho sem a pressa matinal — pois acordei cedo — serei um motorista a menos no trânsito a estar estressado. Um motorista a menos a buzinar, a avançar o sinal, a provocar acidentes.

Vou chegar para trabalhar menos estressado para sorte dos meus alunos.

O mundo ficaria um pouquinho melhor. Não ficaria?

Basta eu fazer a minha parte.

Simples assim.

Porque no fundo a principal interrogante hermenêutica acaba numa simples questão de óptica.

— Se minha lente está torta o jeito é mudar o foco.

Ao invés de olhar o tempo todo para fora eu vou começar a olhar um pouco para dentro.

 

-o-

[Leia os outros artigos de Mustafá Ali Kanso]

 

LEIA SOBRE O LIVRO A COR DA TEMPESTADE do autor deste artigo

À VENDA NAS LIVRARIAS CURITIBA E ARTE & LETRA

Navegando entre a literatura fantástica e a ficção especulativa Mustafá Ali Kanso, nesse seu novo livro “A Cor da Tempestade” premia o leitor com contos vigorosos onde o elemento de suspense e os finais surpreendentes concorrem com a linguagem poética repleta de lirismo que, ao mesmo tempo que encanta, comove.

Seus contos “Herdeiros dos Ventos” e “Uma carta para Guinevere” foram, em 2010, tópicos de abordagem literária do tema “Love and its Disorders” no “4th International Congress of Fundamental Psychopathology.”

Foi premiado com o primeiro lugar no Concurso Nacional de Contos da Scarium Megazine (Rio de Janeiro, 2004) pelo conto Propriedade Intelectual e com o sexto lugar pelo conto Singularis Verita.

1 comentário

  • Brian Carvalho:

    “quando eu perco a confiança em mim mesmo e na minha capacidade de resolver os meus problemas eu fico à mercê de impostores que querem “me vender” soluções instantâneas.
    Por isso proliferam ideologias e misticismos variados nos momentos de crise.

    Curtindo de mais seus textos Mustafá!
    Parabéns! Acompanhando sempre por aqui!

Deixe seu comentário!