A singularidade dos pais humanos

Por , em 19.01.2019

Existe um aspecto do comportamento humano que é exclusivo, mas raramente foco das discussões sobre o que torna nossa espécie única.

Tão necessário é esse traço para a sobrevivência da humanidade que ele é sustentado por uma teia extensa e inter-relacionada de sistemas biológicos, psicológicos e comportamentais que evoluíram ao longo dos últimos meio milhão de anos.

Estamos falando da paternidade humana, e o fato de que isso não vem à mente imediatamente é sintomático da negligência dessa figura-chave em nossa sociedade.

O que nos separa dos demais primatas?

O que nos separa de nossos companheiros símios é uma questão geralmente concentrada na linguagem, no uso de ferramentas, na criatividade ou em nossas notáveis habilidades para inovar.

No entanto, à medida que o nosso conhecimento das habilidades cognitivas e comportamentais de nossos parentes distantes aumenta, a linha divisória entre nós e eles se torna menos clara – mais sobre a extensão e a complexidade, ao invés da presença ou ausência de um comportamento.

Por exemplo, a produção e uso de ferramentas. Os chimpanzés são adeptos da seleção e modificação de talos de gramíneas para usar como “varas” para “pescar” cupins, mas sua capacidade de inovar é limitada, por isso não há um avanço rápido no desenvolvimento de ferramentas, como seria o caso entre os seres humanos.

Onde entra a paternidade?

Quando a antropóloga evolucionária Anna Machin começou a pesquisar a paternidade há 10 anos, acreditava-se que os pais contribuíam pouco para a vida de seus filhos e menos ainda para a sociedade.

Qualquer comportamento paternal que um homem demonstrasse era tido como resultado do aprendizado, e não de qualquer habilidade paterna inata. Seu papel parecia confinado ao de um parente secundário.

Como alguém que começou sua carreira de pós-graduada como primatologista, Machin sabia que pais que ficam por perto, em vez de sumirem logo após o acasalamento, são extremamente raros no mundo dos primatas. Além de nós, ela cita apenas uma espécie de macaco sul-americano. De fato, estamos entre os únicos 5% dos mamíferos que têm pais investidos na criação dos filhos.

Dada a natureza parcimoniosa da evolução, a paternidade humana – com suas complexas mudanças anatômicas, neurais, fisiológicas e comportamentais – não teria surgido a menos que o investimento dos pais em seus filhos não fosse vital para a sobrevivência de nossa espécie.

Como antropóloga, Machin se surpreendeu ao descobrir que os estudos etnográficos raramente focalizavam no papel do pai. O destaque era sempre a família como um todo ou o papel da mãe. Ou seja: havia uma lacuna gritante em nosso conhecimento de nossa própria espécie.

Assim, Machin decidiu responder a duas questões importantes nunca antes lançadas: quem é o pai humano e para que serve ele?

O bebê humano

Para entender o papel do pai, devemos primeiro entender por que ele evoluiu em nossa espécie e não em outra. A resposta inevitavelmente está em nossa anatomia e história de vida únicas.

Bebês humanos são surpreendentemente dependentes quando nascem. Isso se deve à combinação de um estreito canal de nascimento – consequência de nossa bipedalidade – e nossos cérebros anormalmente grandes, seis vezes maiores do que deveriam para um mamífero com o tamanho do nosso corpo.

Para garantir a sobrevivência da mãe e do bebê e a existência continuada de nossa espécie, evoluímos um período de gestação encurtado, permitindo que a cabeça passe com segurança por esse canal. A consequência disso é que nossos bebês nascem muito antes de seus cérebros estarem totalmente desenvolvidos.

Esse investimento reduzido no útero não levou a um período compensatório maior de investimento materno após o nascimento. Em vez disso, o período mínimo de lactação necessário para uma criança sobreviver também foi drasticamente reduzido; a idade ao desmame pode ser de três ou quatro meses, em um forte contraste com os cinco anos dos chimpanzés. Por quê?

As fases da vida: a criança humana

Se nós, como espécie, seguíssemos a trajetória do chimpanzé, então nosso intervalo de parto (o tempo entre o nascimento de um bebê e o próximo) teria sido tão longo, complexo e sedento de energia que teria levado a uma incapacidade de aumento de nossa população.

Assim, a evolução selecionou aqueles membros de nossa espécie que poderiam desmamar seus bebês mais cedo e retornar à reprodução, garantindo a sobrevivência de seus genes e de nossa espécie. Essas mudanças na duração da gestação e da lactação levaram a estágios totalmente novos da vida, sendo o principal deles a criança humana.

As fases da vida e como são distribuídas – entre reprodução, crescimento e manutenção – afetam aspectos como duração da gestação e da lactação, idade da maturidade sexual, tamanho da ninhada e tempo de vida. Na maioria das espécies, incluindo todos os primatas além de nós, isso leva a três estágios distintos: infantil, juvenil e adulto. O infantil é o tempo desde o nascimento até o desmame; o juvenil é do desmame até a maturidade sexual; e adulto é da maturidade sexual à morte.

Os humanos, por sua vez, exibem cinco fases de vida: lactente, infantil, juvenil, adolescente e adulto.

Preciso de ajuda!

O estágio infantil dura do desmame até o momento da independência alimentar. Os bebês param de mamar antes de serem capazes de encontrar e processar alimentos sozinhos. Como resultado, uma vez desmamados, eles ainda precisam de um adulto para alimentá-los até que sejam capazes de fazer isso sozinhos.

Só que, uma vez terminada a lactação, a mãe pode engravidar de novo rapidamente, tendo que investir energia no próximo feto faminto. Então quem vai encontrar, processar e alimentar sua criança em rápido desenvolvimento?

Quando essas questões críticas de sobrevivência apareceram pela primeira vez há cerca de 800 mil anos, foram as parentes mulheres que entraram em cena. As mães se voltavam para avós, irmãs, tias e até filhas mais velhas para ajudá-las.

Isso porque a cooperação entre indivíduos do mesmo sexo geralmente evolui antes da cooperação entre indivíduos de sexo diferente, uma vez que manter o controle da reciprocidade com o sexo oposto é mais cognitivamente desgastante. Além disso, tem que haver benefícios suficientes para os genes do pai para fazer com que ele renuncie a uma vida de acasalamento com várias fêmeas para se concentrar exclusivamente na prole de uma fêmea.

Há 500 mil anos, o cérebro de nossos ancestrais evoluiu mais uma vez, e se tornou mais energeticamente faminto do que nunca. A comida – carne – agora necessária para alimentá-lo era ainda mais complicada de encontrar e processar do que antes.

Somente a ajuda feminina já não era suficiente; sem a presença do pai, a sobrevivência de seu filho e, portanto, de sua herança genética estava ameaçada. Foi assim que os homens foram incentivados a se comprometer com uma mulher e uma família.

Pais professores

Com o passar do tempo e o aumento da complexidade da vida humana, outro estágio da vida evoluiu: a adolescência, um período de aprendizagem e exploração.

É nesse estágio da vida que os pais realmente começaram a assumir o controle, pois havia muito a ensinar a um adolescente sobre regras de cooperação, habilidades de caça, produção de ferramentas e conhecimento da paisagem e de seus habitantes. As mães, ainda focadas na produção do próximo filho, não podiam gastar tanto tempo ensinando experiências de vida prática a sua prole.

O que é mais interessante é que esse papel de “professor” ainda é verdadeiro para os pais hoje em dia. Em todas as culturas, independentemente do modelo econômico, os pais ensinam aos filhos as habilidades vitais para sobreviver em seu ambiente particular.

Na tribo Kipsigis, no Quênia, os pais ensinam seus filhos sobre os aspectos práticos e econômicos da plantação de chá. Desde os nove ou dez anos, os meninos podem se juntar a seus pais em eventos sociais onde negócios são feitos, garantindo que também tenham as habilidades de relacionamento necessárias para o sucesso nesse habitat marginal e difícil.

Em contraste, crianças da tribo Aka de ambos os sexos se juntam a seus pais nas caçadas que ocorrem diariamente nas florestas da República Democrática do Congo. Os homens Aka são indiscutivelmente os pais mais ativos do mundo, gastando quase metade de seu tempo em contato físico com seus filhos.

Mesmo no Ocidente, pais são fontes vitais de educação. Em seu livro “The Life of Dad” (2018), Machin argumenta que, quando observamos atentamente, embora os pais ocidentais não pareçam estar transmitindo habilidades de vida abertamente práticas, eles transmitem muitas das habilidades sociais necessárias para ter sucesso em nosso mundo capitalista competitivo.

O cérebro do papai

Os pais humanos são tão críticos para a sobrevivência da espécie que a evolução não deixou sua adequação a esse papel ao acaso. Como as mães, os pais foram moldados pela evolução para serem biologicamente, psicologicamente e comportamentalmente preparados.

As alterações hormonais e cerebrais observadas nas novas mães são espelhadas nos pais. Reduções irreversíveis na testosterona e mudanças nos níveis de oxitocina preparam o homem para ser um pai sensível e responsivo, sintonizado com as necessidades de seu filho e preparado para se relacionar.

Quando a testosterona de um homem cai, tornando-o menos propenso a acasalar com outras mulheres fora sua esposa, a recompensa da dopamina química aumenta; isso significa que ele tem uma gratificação maior todas as vezes que interage com seu filho.

Dentro do antigo núcleo límbico do cérebro, há um aumento nas regiões ligadas à afeição, nutrição e detecção de ameaças. Da mesma maneira reforçada pela conectividade e pelo grande número de neurônios, as zonas cognitivas mais altas do neocórtex promovem a empatia, a resolução de problemas e o planejamento.

Diferenças entre o cérebro das mães e dos pais

A evolução odeia redundância e não selecionaria funções duplicadas para os pais e as mães. Sendo assim, o papel do pai evoluiu para complementar o da mãe.

Isso fica claro na estrutura neural do próprio cérebro. Em um estudo de 2012, a psicóloga israelense Shir Atzil explorou as semelhanças e diferenças na atividade cerebral entre mães e pais enquanto eles assistiam a vídeos de seus filhos. Ela descobriu que ambos os pais pareciam ter uma conexão semelhante para entender as necessidades emocionais e práticas da criança, com picos de atividade nas áreas do cérebro ligadas à empatia.

Fora isso, as diferenças eram gritantes. A mãe via maior atividade na área límbica de seu cérebro, ligada ao afeto e à detecção de risco. O pai, no neocórtex e particularmente em áreas ligadas ao planejamento, à solução de problemas e à cognição social.

Quando uma criança é educada por dois pais, em vez de um pai e uma mãe, a plasticidade do cérebro humano assegura que, no pai primário, ambas as áreas apresentem altos níveis de atividade para que seu filho se beneficie de um ambiente de desenvolvimento total.

Jogue seu filho para o alto!

Os pais e seus filhos evoluíram para levar a cabo um comportamento decisivo em termos de desenvolvimento: brincadeiras grosseiras.

São brincadeiras altamente físicas, com lançamentos pelo ar, pulos e cócegas, acompanhados por gritos e risos altos.

Isso é crucial para o vínculo entre pai e filho e o desenvolvimento da criança por duas razões: primeiro, a natureza extrema desse comportamento permite que os pais construam uma conexão com seus filhos rapidamente; segundo, devido à natureza recíproca da brincadeira e seu risco inerente, ela começa a ensinar a criança sobre a troca em relacionamentos, e como julgar e lidar apropriadamente com o risco.

A análise hormonal inclusive mostra que, quando se trata de interagir uns com os outros, pais e filhos obtêm seus picos de oxitocina, indicando maior recompensa, ao brincarem juntos desta forma. O pico correspondente para mães é quando elas estão sendo afetuosas com seus filhos.

Novamente, a evolução preparou tanto pais quanto filhos para realizar este comportamento importante em termos de desenvolvimento juntos.

O exemplo preparador

Da mesma forma, o apego de um pai ao filho evoluiu para ser crucialmente diferente do de uma mãe. O apego descreve um estado psicológico em que entramos quando estamos em um relacionamento intenso e unido com alguém.

Esse tipo de relação atua como uma base segura a partir da qual podemos explorar o mundo, seguros no conhecimento de que podemos sempre voltar ao foco de nosso apego para ter afeto e ajuda.

Quando se trata de apego, a ligação entre mãe e filho é melhor descrita como exclusiva, com base no carinho e no cuidado. Em contraste, o apego do pai ao filho, embora tenha elementos de afeição e cuidado, é baseado no desafio.

Essa diferença capital leva o pai a incentivar seu filho a conhecer outros seres humanos, construir relacionamentos e ter sucesso no mundo. São eles que encorajam seus filhos a obter o máximo de seu aprendizado, que mais ajudam no desenvolvimento de um comportamento social adequado e constroem o senso de valor de uma criança.

Coloque os pais em cena

A conclusão de Anna Machin é a seguinte: precisamos mudar a imagem que temos sobre os pais. Sim, alguns pais são ausentes, enquanto outros podem ser os personagens ineptos de anúncios de marketing, lutando para trocar uma fralda.

Contudo, temos que ampliar nosso espectro do que achamos que é ser pai para incluir todos aqueles que estão por perto, investidos no desenvolvimento emocional, físico e intelectual de seus filhos, independentemente de viverem com eles ou não. Pais que levam para o futebol, leem histórias para dormir, incentivam a resiliência mental de seus filhos e defendem sua entrada em nosso mundo social cada vez mais complexo.

Ao ampliar a conversa, capacitamos os pais a se envolverem mais com seus filhos, algo que beneficia a todos nós. Os filhos de hoje que veem o pai como igual à mãe no ambiente doméstico seguirão esse modelo quando eles próprios se tornarem pais.

Isso, por sua vez, leva a uma mudança na cultura, a um movimento em direção à igualdade no trabalho doméstico, uma divisão do peso que hoje é imposto principalmente às mães.

Valorizar o papel especial de um pai em preparar seu filho para entrar no mundo exterior, moldando seu desenvolvimento emocional, ensinando as regras do comportamento social e da linguagem, ajudando a construir a resiliência mental ao lidar com riscos, enfrentar desafios e superar falhas, é sem dúvida mais importante do que nunca em meio à atual crise da saúde mental dos adolescentes. Arregacem as mangas, papais! [Aeon]

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