Esse deve ser o maior sacrifício ritual de crianças do mundo

Por , em 27.04.2018

Arqueólogos descobriram evidências do maior incidente de sacrifício de crianças das Américas e provavelmente do mundo.

Mais de 140 crianças e 200 jovens lhamas parecem ter sido ritualmente assassinadas há 550 anos em um penhasco com vista para o Oceano Pacífico, à sombra do que era então a capital do Império Chimú, no norte do atual Peru.

A investigação do local está em andamento por uma equipe de colaboração internacional, liderada por Gabriel Prieto, da Universidade Nacional de Trujillo (Peru) e John Verano, da Universidade de Tulane (EUA). As descobertas da pesquisa devem ser publicadas em breve.

O Império Chimú

Escavações científicas modernas já descobriram incidentes de sacrifício humano entre os astecas, os maias e os incas.

No entanto, a descoberta de um evento de sacrifício infantil em grande escala na civilização pré-colombiana de Chimú é sem precedentes.

O local do sacrifício, formalmente conhecido como Huanchaquito-Las Llamas (ou apenas Las Llamas), está localizado em um penhasco a apenas 300 metros do mar, em meio a uma crescente expansão de aglomerados residenciais no distrito de Huanchaco. A menos de 800 metros a leste do local fica Chan Chan, Patrimônio Mundial da UNESCO e o antigo centro administrativo dos Chimú. Além de suas muralhas, fica a moderna capital da província de Trujillo.

Em seu auge, o Império Chimú controlou um território de 940 quilômetros ao longo da costa do Pacífico, bem como vales da moderna fronteira Peru-Equador até Lima. Apenas os incas possuíam um império maior na época, e foram eles que puseram fim à civilização por volta de 1475 dC.

O sacrifício

Incialmente, restos mortais de 42 crianças e 76 lhamas foram encontrados em Las Llamas em 2011. Arqueólogo e nativo de Huanchaco, Prieto estava escavando um templo de 3.500 anos na estrada do local do sacrifício, quando moradores locais o alertaram de restos humanos erodindo das dunas costeiras próximas pela primeira vez.

Quando as escavações foram concluídas em 2016, mais de 140 conjuntos de restos de crianças e 200 lhamas foram descobertos no local; cordas e tecidos têxteis encontrados nos enterros datam o sacrifício entre 1400 e 1450 dC.

Os esqueletos das crianças e dos animais mostram evidências de cortes no esterno, bem como deslocamentos de costela, que sugerem que os peitos das vítimas foram abertos e separados, talvez para facilitar a remoção do coração. A falta de cortes hesitantes indica que eles foram feitos por uma ou mais mãos treinadas. “É um assassinato ritual, e é muito sistemático”, disse Verano.

Os restos de três adultos – um homem e duas mulheres – foram encontrados nas proximidades. Sinais de traumatismo direto na cabeça e falta de bens com os corpos levaram os pesquisadores a suspeitar que eles podem ter desempenhado um papel no evento de sacrifício e foram mortos pouco tempo depois.

Quem são as vítimas?

As 140 crianças sacrificadas tinham entre 5 e 14 anos de idade, sendo que a maioria possui entre 8 e 12 e foi enterrada de frente para o oeste, para o mar. As lhamas tinham menos de 18 meses e estavam geralmente enterradas voltadas para o leste, em direção aos altos picos dos Andes.

Os pesquisadores também estão tentando desvendar as histórias de vida das vítimas – tais como quem eram e de onde vieram.

Embora seja difícil determinar o sexo com base nos restos esqueletais em uma idade tão jovem, análises preliminares de DNA indicam que tanto meninos quanto meninas foram vítimas, enquanto as análises isotópicas sugerem que elas eram provenientes de várias regiões e grupos étnicos do Império Chimú.

A evidência de modificação craniana, praticada em algumas áreas montanhosas da época, também apoia a ideia de que as crianças foram trazidas para a costa a partir de áreas mais distantes da influência Chimú.

Um só sacrifício, mesmo?

As vítimas parecem ter sido mortas ritualmente em um único evento, com base em evidências de uma camada de lama seca encontrada na parte menos perturbada do local de 700 metros quadrados.

Os pesquisadores acreditam que a camada de lama uma vez cobriu toda a duna arenosa onde o ritual ocorreu, e foi perturbada durante a preparação das covas e o subsequente evento de sacrifício.

Arqueólogos descobriram pegadas de adultos com sandálias, cães, crianças descalças e jovens lhamas preservadas na lama, com marcas profundas de derrapagem, ilustrando a relutação das oferendas de quatro patas.

Uma análise detalhada dessas pegadas pode permitir que os arqueólogos reconstruam a procissão ritual: parece que as crianças e lhamas foram conduzidas para o local a partir do norte e do sul do penhasco, encontrando-se no centro do sítio arqueológico, onde foram sacrificadas.

Sacrifício ritual humano: comum na história?

O sacrifício humano tem sido praticado em quase todos os cantos do globo em vários momentos, e os cientistas acreditam que o ritual pode ter desempenhado um papel importante no desenvolvimento de sociedades complexas através da estratificação social e controle das populações por classes sociais de elite.

Mas a maioria dos modelos sociais que compreendem sacrifício humano baseia-se na matança ritual de adultos.

Até agora, o maior evento de sacrifício de crianças para o qual temos evidências físicas é o ritual de assassinato de 42 crianças no Templo Mayor da capital asteca de Tenochtitlán, atual cidade do México.

Vítimas individuais de sacrifícios infantis também foram descobertas em montanhas incas. Fora das Américas, existe um debate científico se os restos de crianças encontradas na antiga cidade fenícia de Cartago constituem sacrifícios rituais.

Por quê?

O sacrifício em massa de apenas crianças e jovens lhamas que ocorreu em Las Llamas parece ser um fenômeno previamente desconhecido no registro arqueológico, e imediatamente levanta a questão: o que motivaria o povo Chimú a cometer tal ato?

A camada de lama encontrada durante as escavações pode fornecer uma pista. Ela pode ter sido resultado de chuvas fortes e inundações na região geralmente árida, provavelmente associado a um evento climático relacionado ao El Niño. As altas temperaturas do mar teriam atrapalhado a pesca marinha na área, enquanto inundações costeiras poderiam ter sobrecarregado a extensa infraestrutura de canais agrícolas dos Chimú.

Segundo Haagen Klaus, professor de antropologia da Universidade George Mason (EUA), que escavou algumas das primeiras evidências de sacrifício de crianças na região, mas não é membro do projeto Las Llamas, as sociedades ao longo da costa peruana podem ter se voltado para o sacrifício infantil quando o sacrifício de adultos não foi suficiente para afastar as repetidas perturbações provocadas pelo El Niño.

“As pessoas sacrificam aquilo que é de maior valor para elas. Elas podem ter percebido que [o sacrifício de adultos] era ineficaz. As chuvas continuavam chegando. Talvez houvesse necessidade de um novo tipo de vítima sacrifical. Mas é impossível saber sem uma máquina do tempo”, explicou Klaus. “Existe a ideia de que o assassinato ritual é contratual, que é realizado para obter algo de divindades sobrenaturais. Mas na verdade é uma tentativa muito mais complicada de negociação com essas forças sobrenaturais e sua manipulação pelos vivos”.
Incidentes semelhantes

Desde a descoberta de Las Llamas, a equipe de pesquisa tem encontrado evidências arqueológicas de locais semelhantes em torno de Huanchaco, com sacrifícios infantis e de lhamas.

Todos os locais são agora objeto de investigação científica, com o apoio da National Geographic Society.

“Las Llamas já é um local único no mundo, e imaginamos quantos outros iguais podem existir na área para pesquisas futuras”, disse Prieto. [NatGeo]

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