Físicos debatem ideia lançada por Hawking anos atrás de que o universo não teve começo

Por , em 25.06.2019

Em 1981, Stephen Hawking apresentou o que ele mais tarde consideraria sua ideia mais importante: uma proposta sobre como o universo poderia ter surgido do nada.

Antes dessa palestra, todas as histórias de origem cosmológica, científicas ou teológicas convidavam a tréplica: “O que aconteceu antes do Big Bang?”. O físico e padre belga Georges Lemaître, por exemplo, rebobinou a expansão do universo até um ponto quente e denso de energia. Mas de onde veio essa energia?

A teoria do Big Bang tem ainda outros problemas. Um feixe de energia em expansão se transformaria em uma bagunça, em vez do cosmo enorme e plano que os astrônomos modernos observam.

Em 1980, um ano antes da palestra de Hawking, o cosmólogo Alan Guth percebeu que os problemas do Big Bang poderiam ser consertados com um acréscimo: um surto de crescimento inicial e exponencial conhecido como inflação cósmica, que teria tornado o universo enorme, suave e plano, antes que a gravidade tivesse a chance de destruí-lo.

A inflação rapidamente se tornou a principal teoria de nossas origens cósmicas. No entanto, a questão das condições iniciais permaneceu: qual é a fonte do minúsculo fragmento que supostamente insuflou e se tornou nosso cosmo? E qual a fonte da energia potencial que o inflava?

Hawking e o “nada”

Hawking, em seu brilhantismo, viu uma maneira de acabar com o interminável debate: ele propôs que não há fim nem começo. “Deve haver algo muito especial sobre as condições de contorno do universo, e o que pode ser mais especial do que a condição de que não há fronteira?”, disse.

A “proposta sem fronteiras”, que Hawking e seu colega James Hartle formularam em um artigo de 1983, visualiza o cosmos tendo a forma de uma peteca (uma espécie de forma cônica aberta). Assim como uma peteca tem um diâmetro de zero no seu ponto mais baixo e aumenta gradualmente, o universo, de acordo com a proposta sem limite, expande-se suavemente a partir de um ponto de tamanho zero.

Hartle e Hawking derivaram uma fórmula descrevendo toda a peteca – a chamada “função de onda do universo” que engloba todo o passado, presente e futuro de uma vez, sem necessidade de sementes da criação, um criador ou qualquer transição de tempo.

“Perguntar o que veio antes do Big Bang não tem sentido, de acordo com a proposta sem fronteira, porque não há noção de tempo disponível para se referir”, disse Hawking em outra palestra em 2016, um ano e meio antes de sua morte. “Seria como perguntar o que está ao sul do Polo Sul”.

O universo sem fronteira

A proposta de Hartle e Hawking reconceitualizou radicalmente o tempo. Cada momento no universo se torna uma seção transversal da peteca; enquanto percebemos o universo como se expandindo e evoluindo de um momento para o outro, o tempo realmente consiste em correlações entre o tamanho do universo em cada corte transversal e outras propriedades, particularmente sua entropia ou desordem.

A entropia aumenta da base para as penas, apontando uma flecha emergente do tempo. Perto do fundo arredondado da peteca, porém, as correlações são menos confiáveis; o tempo deixa de existir e é substituído por um espaço puro. Hartle explica: “Não tínhamos pássaros no universo primitivo; nós temos pássaros agora. Não tínhamos tempo no universo primordial, mas temos tempo agora”.

A proposta sem fronteiras fascinou e inspirou físicos por quase quatro décadas. “É uma ideia incrivelmente bela e provocativa”, disse Neil Turok, cosmólogo do Instituto Perimeter de Física Teórica em Waterloo (Canadá).

A proposta representa um primeiro palpite para a descrição quântica do cosmos – a função de onda do universo. Logo, um campo inteiro, a cosmologia quântica, surgiu à medida que os pesquisadores criavam ideias alternativas sobre como o universo poderia ter vindo do nada, analisavam as várias previsões e maneiras de testá-las e interpretavam seu significado filosófico.

No entanto, há dois anos, um artigo de Turok, com colaboração de Job Feldbrugge, também do Instituto Perimeter, e Jean-Luc Lehners, do Instituto Max Planck de Física (Alemanha), questionou a proposta de Hartle e Hawking. O artigo de 2017 foi publicado na Physical Review Letters e pode ser lido aqui.

A refutação

O trio crê que a proposta só é viável se um universo que se curva a partir de um ponto adimensional no modo como Hartle e Hawking imaginam naturalmente cresce em um universo como o nosso.

Hawking e Hartle argumentaram que, de fato, universos sem fronteiras tenderão a ser imensos, incrivelmente suaves, impressionantemente planos e em expansão, exatamente como o nosso cosmos real.

“O problema com essa abordagem é que é profundamente ambígua”, argumentou Turok. Ele e seus coautores abordaram a proposta com novas técnicas matemáticas que, na sua visão, tornam as previsões muito mais concretas do que antes.

“Descobrimos que [a teoria] simplesmente falha miseravelmente”, explicou Turok. “Não é possível, quântico mecanicamente, para um universo começar da maneira que eles imaginavam”.

O artigo reacendeu o debate. Outros especialistas montaram uma defesa vigorosa da ideia de não-fronteira e uma refutação do raciocínio de Turok e seus colegas. “Nós discordamos de seus argumentos técnicos”, disse Thomas Hertog, físico da Universidade Católica de Leuven (Bélgica), que colaborou estreitamente com Hawking nos últimos 20 anos de sua vida. “Mas, mais fundamentalmente, discordamos também de sua definição, sua estrutura, sua escolha de princípios. E essa é a discussão mais interessante”.

Os princípios

O desacordo técnico vem de diferentes crenças sobre como a natureza funciona. Hartle e Hawking expressaram a função de onda do universo – que descreve seus estados prováveis ​​- como a soma de todas as maneiras possíveis que ele poderia ter suavemente expandido a partir de um ponto. A esperança era que a soma de todas as possíveis “histórias de expansão”, universos de fundo plano de todas as formas e tamanhos diferentes, produzisse uma função de onda que desse uma alta probabilidade a um universo enorme, liso e plano como o nosso. Se a soma ponderada de todas as histórias possíveis de expansão produzir algum outro tipo de universo como o resultado mais provável, a proposta falharia.

O problema é que esse caminho de todos os possíveis históricos de expansão é muito complicado para se calcular exatamente. Inúmeras formas e tamanhos diferentes de universos são possíveis, e cada um pode ser confuso. “Murray Gell-Mann costumava me perguntar”, disse Hartle, referindo-se ao falecido físico ganhador do Prêmio Nobel, “se você conhece a função de onda do universo, por que você não é rico?”.

Claro, para realmente resolver a função de onda, Hartle e Hawking tiveram que simplificar drasticamente a situação, ignorando até mesmo as partículas específicas que povoam o nosso mundo (o que significava que sua fórmula estava longe de ser capaz de prever o mercado de ações). Eles consideraram o caminho sobre todos os universos possíveis em um “mini super espaço”, definido como o conjunto de todos os universos com um único campo de energia fluindo através deles: a energia que alimentava a inflação cósmica.

Mesmo o cálculo de tal mini super espaço é difícil de ser resolvido com exatidão, mas os físicos sabem que existem dois históricos possíveis de expansão que potencialmente dominam o cálculo. Essas formas rivais de universo ancoram os dois lados do debate atual.

As soluções rivais são as duas histórias de expansão “clássicas” que um universo pode ter. Após um surto inicial de inflação cósmica a partir do zero, o universo se expande constantemente de acordo com a teoria da gravidade e do espaço-tempo de Einstein. Histórias de expansão mais estranhas, como universos em formato de bola de futebol ou lagartas, geralmente se cancelam no cálculo quântico.

Uma das duas soluções clássicas se assemelha ao nosso universo. Em escalas grandes, é suave e aleatoriamente salpicado de energia, devido a flutuações quânticas durante a inflação. Como no universo real, as diferenças de densidade entre as regiões formam uma curva. Se esta possível solução de fato dominar a função de onda, torna-se plausível imaginar que uma versão muito mais detalhada e exata da função de onda possa servir como um modelo cosmológico viável do universo real.

A outra forma de universo potencialmente dominante não é nada como a realidade. À medida que se alarga, a energia que a infunde varia cada vez mais, criando enormes diferenças de densidade de um lugar para o outro, que a gravidade piora constantemente. As variações de densidade formam uma curva de sino invertido, onde as diferenças entre as regiões não se aproximam de zero, mas de infinito. Se este é o termo dominante na função de onda, então a proposta de Hartle-Hawking parece estar errada.

Questão de escolha

Os dois históricos dominantes apresentam uma escolha de qual caminho seguir. Qual é a história de expansão dominante? Só pode haver uma. Pesquisadores têm optado por trilhas diferentes.

Em seu artigo de 2017, Turok, Feldbrugge e Lehners percorreram o jardim de possíveis histórias de expansão que levaram à segunda solução dominante. Na sua opinião, o único contorno do universo possível é aquele que examina valores reais (em oposição a valores imaginários, que envolvem as raízes quadradas de números negativos) para uma variável chamada “lapso”.

O lapso é essencialmente a altura de cada universo de peteca possíveis – a distância que leva para atingir um determinado diâmetro. Na falta de um elemento causal, o lapso não é exatamente a nossa noção usual de tempo. No entanto, Turok e seus colegas argumentam, em parte com base na causalidade, que apenas os valores reais do lapso fazem sentido físico. E somar os universos com valores reais de lapso leva à solução dois, descontroladamente flutuante.

“As pessoas depositam grande fé na intuição de Stephen”, disse Turok. “Por um bom motivo – quero dizer, ele provavelmente teve a melhor intuição entre qualquer um sobre esses tópicos. Mas ele não estava sempre certo”.

Real x imaginário

O físico do Imperial College London (Reino Unido) Jonathan Halliwell analisou essa questão ao lado de Hartle em 1990. Na visão deles, assim como na de Hertog e, aparentemente, na de Hawking, apenas os contornos que captam a “melhor” história de expansão fazem sentido. A mecânica quântica requer probabilidades para adicionar a 1, ou ser “normalizável”, mas o universo descontroladamente flutuante em que a equipe de Turok pousou não é. Essa solução é absurda, atormentada por infinidades e não permitida pelas leis quânticas – sinais óbvios, de acordo com os defensores da outra solução, para caminhar para o lado oposto.

É verdade que os contornos que passam pela solução boa resumem possíveis universos com valores imaginários para suas variáveis ​​de lapso. Mas além de Turok e companhia, poucas pessoas acham que isso é um problema. Números imaginários permeiam a mecânica quântica. Para a equipe Hartle-Hawking, os críticos estão invocando uma falsa noção de causalidade ao exigir que o lapso seja real. “Esse é um princípio que não está escrito nas estrelas e com o qual discordamos profundamente”, disse Hertog.

Hawking raramente mencionou sua formulação integral da função de onda em seus últimos anos de vida, em parte por causa da ambiguidade em torno da escolha do contorno. Ele considerou a história de expansão normalizável como a solução para uma equação mais fundamental sobre o universo apresentada na década de 1960 pelos físicos John Wheeler e Bryce DeWitt.

Wheeler e DeWitt argumentaram que a função de onda do universo, seja ela qual for, não pode depender do tempo, já que não há relógio externo para medi-lo. E assim a quantidade de energia no universo, quando você soma as contribuições positivas e negativas da matéria e da gravidade, deve permanecer zero para sempre. A função de onda satisfaz a equação de Wheeler-DeWitt para o “mini super espaço”.

Muito pela frente

Nos últimos anos de sua vida, para entender melhor a função de onda de maneira mais geral, Hawking e seus colaboradores começaram a aplicar a holografia – uma nova abordagem de sucesso que trata o espaço-tempo como um holograma. Hawking buscou uma descrição holográfica de um universo em forma de peteca, no qual a geometria de todo o passado se projetaria do presente.

Esse esforço continua na ausência de Hawking. Mas Turok vê essa mudança de ênfase como mudar as regras. Ao se afastar da formulação integral, os proponentes da ideia de não-fronteira a tornaram mal definida. O próprio Hartle discorda.

Turok e seus colegas vêm desenvolvendo um novo modelo cosmológico que tem muito em comum com a proposta sem fronteiras. Mas, em vez de uma peteca, ele prevê duas rolhas de cortiça dispostas em uma espécie de figura de ampulheta, com o tempo fluindo em ambas as direções. Há vantagens e desvantagens para esse modelo também.

Houve ainda um ressurgimento do interesse na “proposta de tunelamento”, uma forma alternativa que o universo poderia ter surgido do nada, concebida nos anos 1980 de forma independente pelos cosmólogos russo-americanos Alexander Vilenkin e Andrei Linde. A proposta, que difere da função de onda principalmente por meio de um sinal de menos, lança o nascimento do universo como um evento de “tunelamento” de mecânica quântica.

Perguntas abundam sobre como as várias propostas se cruzam com o raciocínio antrópico e a infame ideia do multiverso. Não importa como as coisas andem, no entanto, talvez tenhamos uma essência do quadro que Hawking pintou pela primeira vez 38 anos atrás.

“Se estamos falando de uma teoria da mecânica quântica, o que mais há para encontrar além da função de onda?”, perguntou Juan Maldacena, eminente físico teórico do Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA). A questão da função de onda do universo “é o tipo certo de pergunta a ser feita. Se estamos encontrando a função de onda correta, ou como devemos pensar sobre a função de onda – isso é menos claro”, conclui. [QuantaMagazine]

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