Meritocracia não é apenas falsa: acreditar nela pode fazer mal para você

Por , em 25.03.2019

Atualmente, a meritocracia é um importante ideal social. Políticos de todo o espectro ideológico se valem continuamente dessa teoria, porque ela é mesmo boa: uma espécie de sistema ou modelo de hierarquização e premiação baseado nos méritos de uma pessoa.

Levando em conta esse conceito, fica implícito que coisas como dinheiro, poder, emprego e acesso à universidade devem ser privilégios distribuídos de acordo com a habilidade e o esforço de cada um.

Uma das metáforas mais comuns para a meritocracia é a da “nivelação” das condições: para todos terem a mesma chance de sucesso, precisam começar do mesmo ponto. A partir daí, destaca-se quem tem mais merecimento. Lindo, não é?

Pode até ser. Mas não é verdadeiro.

A crença meritocrática

Conceitualmente e moralmente, a meritocracia é apresentada como o oposto de sistemas como a aristocracia hereditária, na qual a posição social de uma pessoa é determinada pela sorte de ter nascido dentro de uma família abastada, por exemplo. Sob a meritocracia, a riqueza e a vantagem são a justa remuneração do mérito, não algo fortuito e resultado de eventos externos.

A maioria das pessoas não apenas pensa que o mundo deve ser administrado meritocraticamente, como acham que o mundo já é meritocrático.

No Reino Unido, por exemplo, 84% dos entrevistados da pesquisa “British Social Attitudes” de 2009 afirmaram que o trabalho árduo é “essencial” ou “muito importante” quando se trata de se dar bem na sociedade. Nos EUA, em 2016, o Brookings Institute descobriu que 69% dos americanos acreditam que as pessoas são recompensadas por sua inteligência e habilidades. Em ambos os estudos, os participantes acreditavam que fatores externos, como sorte e nascimento em uma família rica, eram muito menos importantes para o sucesso.

Embora essas ideias sejam mais pronunciadas nesses dois países, elas são populares em todo o mundo.

O papel da sorte

A crença de que o mérito, em vez da sorte, determina o sucesso ou o fracasso é demonstravelmente falsa – inclusive porque o próprio mérito é, em grande parte, resultado da sorte.

Por exemplo, talento e capacidade dependem em grande parte do patrimônio genético e da educação de uma pessoa, que varia de acordo com suas condições aleatórias de nascimento.

Além disso, diversas circunstâncias fortuitas figuram em cada história de sucesso. Em seu livro “Sucesso e sorte: O mito da meritocracia”, o economista americano Robert Frank relatou os riscos e as coincidências que levaram à ascensão de Bill Gates como fundador da Microsoft, bem como seu próprio sucesso como acadêmico.

Não é sobre negar o talento de pessoas de sucesso. É sobre entender que a sorte intervém ao fornecer circunstâncias nas quais o mérito pode se traduzir em sucesso. De acordo com Frank, isso é especialmente verdadeiro quando o sucesso em questão é grande, e onde o contexto no qual ele é alcançado é competitivo. Certamente existem programadores quase ou tão hábeis quanto Gates, que, no entanto, não conseguiram se tornar a pessoa mais rica da Terra.

A ligação entre o mérito e o resultado é tênue e indireta, na melhor das hipóteses. Em contextos competitivos, muitos têm mérito, mas poucos conseguem de fato “chegar lá”. O que separa essas duas coisas é provavelmente a sorte.

O lado ruim da meritocracia

Além de ser falsa, um crescente corpo de pesquisa psicológica e neurocientífica tem sugerido que a crença na meritocracia torna as pessoas mais egoístas, menos autocríticas e mais propensas a agir de maneira discriminatória.

Por exemplo, existe uma maneira comum de medir comportamentos egoístas em laboratório, que consiste em pedir que os participantes façam ofertas em dinheiro a colegas. Se o colega recusa a oferta, ambos ficam sem nenhum dinheiro. Logo, se o participante tem R$ 100, costuma fazer ofertas de R$ 40 a 50, para aumentar as chances de aceite.

Em um estudo da Universidade Normal de Pequim (China), alguns participantes jogaram um game de habilidade antes de fazer tais ofertas em dinheiro a colegas. Os jogadores que foram (falsamente) levados a acreditar que tinham “ganhado” a partida reivindicaram mais dinheiro para si e menos para o colega do que aqueles que não jogaram.

Outros estudos confirmam esse achado. Os economistas Aldo Rustichini, da Universidade de Minnesota (EUA), e Alexander Vostroknutov, da Universidade de Maastricht (Holanda), por exemplo, descobriram que participantes que se envolviam em um jogo de habilidade eram muito menos propensos a apoiar a redistribuição de prêmios do que aqueles que se envolviam em jogos de azar. Apenas ter a ideia de habilidade em mente torna as pessoas mais tolerantes com resultados desiguais. Enquanto isso foi verdade para todos os participantes, o efeito foi muito mais pronunciado entre os “vencedores”.

Mito da igualdade leva à discriminação

Por outro lado, pesquisas sobre gratidão indicam que lembrar o papel da sorte aumenta a generosidade. Em seu livro, Frank cita um estudo no qual simplesmente pedir que os sujeitos se lembrassem dos fatores externos (sorte, ajuda de outros) que contribuíram para seus sucessos na vida os tornavam muito mais propensos a doar para a caridade do que aqueles que eram solicitados a se lembrar dos fatores internos (como habilidade).

Talvez mais perturbador, simplesmente considerar a meritocracia como um valor parece promover um comportamento discriminatório. O administrador Emilio Castilla, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, EUA), e o sociólogo Stephen Benard, da Universidade de Indiana (EUA), descobriram isso quando estudaram tentativas de implementar práticas meritocráticas, como compensação baseada em desempenho, em empresas privadas.

Nas empresas que explicitamente consideravam a meritocracia como um valor central, os gerentes atribuíam maiores recompensas a empregados do sexo masculino do que do sexo feminino, com avaliações de desempenho idênticas. Essa preferência desapareceu quando a meritocracia não foi explicitamente adotada como valor.

Isso é surpreendente porque a imparcialidade é o cerne do apelo moral da meritocracia. A “nivelação” para premiar por mérito pretende justamente evitar desigualdades baseadas em gênero, raça e afins. No entanto, Castilla e Benard descobriram que, ironicamente, a meritocracia leva exatamente ao tipo de desigualdade que pretende eliminar.

A dupla sugere que esse “paradoxo da meritocracia” ocorre porque a adoção explícita da meritocracia como um valor convence os sujeitos de sua própria boa-fé moral. Satisfeitas porque são justas, as pessoas tornam-se menos inclinadas a examinar seu próprio comportamento em busca de sinais de preconceito.

Autobajulação e statos quo

De forma geral, a meritocracia é uma crença falsa e não muito salutar. Como acontece com qualquer ideologia, parte de seu atrativo é justificar o status quo, explicando por que as pessoas estão onde estão na ordem social.

Mais do que isso: é um princípio psicológico bem estabelecido porque as pessoas preferem acreditar que o mundo é justo.

Além de legitimação, a meritocracia também oferece lisonja. Onde o sucesso é determinado pelo mérito, cada vitória pode ser vista como um reflexo da própria virtude e valor da pessoa. Sua alquimia ideológica transmuta a propriedade em louvor, a desigualdade material em superioridade pessoal.

A meritocracia licencia os ricos e poderosos para se verem como gênios produtivos. Embora esse efeito seja mais espetacular entre a elite, quase qualquer conquista pode ser vista através de olhos meritocráticos. É muito legal pensar que você merece todas as coisas boas que acontecem contigo, porque correu atrás ou sei lá o quê, não é mesmo?

Se formar no ensino médio, o sucesso artístico ou simplesmente ter dinheiro podem todos ser vistos como evidência de talento e esforço. Da mesma forma, fracassos mundanos tornam-se sinais de defeitos pessoais, fornecendo uma razão pela qual aqueles que não estão no topo da hierarquia social merecem permanecer na sua base.

É por isso que os debates sobre até que ponto sucessos de indivíduos específicos são fruto de seu próprio esforço e sobre os efeitos de várias formas de “privilégio” podem ficar tão esquentados. Esses argumentos não são apenas sobre quem consegue ter o quê; é sobre quanto “crédito” as pessoas podem tomar pelo que têm, sobre o que seus sucessos lhes permitem acreditar sobre suas qualidades internas.

Sucesso x sorte: transformando a relação

Sob o pressuposto da meritocracia, a própria noção de que o sucesso pessoal é o resultado da “sorte” pode ser insultante. Reconhecer a influência de fatores externos parece minimizar ou negar a existência de mérito individual.

Apesar da garantia moral e da bajulação pessoal que a meritocracia oferece ao bem-sucedido, talvez essa noção devesse ser abandonada na sociedade porque acreditar nela encoraja o egoísmo, a discriminação e a indiferença ao sofrimento do infeliz.

Será mesmo que você não é um milionário porque não merece? Mais do que isso: será mesmo que as pessoas que passam fome, não têm oportunidade de estudar e trabalhar estão nessa situação porque merecem?

Por fim, não é absurdo negar que qualquer fator externo além do próprio esforço influencie no sucesso das pessoas? A sorte não é uma ofensa; é parte da vida. [BigThink]

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