Fáscia: conheça essa misteriosa parte do corpo

Por , em 30.07.2014

Você já ouviu falar de algo chamado fáscia?

Fáscia, ou compartimento fascial, é o nome dado ao conjunto de tecidos fibrosos que cobrem cada músculo individual dos seres humanos. Cada um destes tecidos é geralmente alimentado por um nervo e vasos sanguíneos específicos.

Nós sabemos o que fáscia é (bom, mais ou menos), mas não sabemos para que serve, se possui algum benefício terapêutico, ou mesmo como estudá-la.

A conferência

Em outubro de 2007, mais de 100 cientistas de todo o mundo reuniram-se em Boston, nos Estados Unidos, para discutir as últimas pesquisas feitas sobre fáscia, essa rede de tecido conjuntivo que supostamente envolve todo o corpo.

Não só pesquisadores científicos estiveram presentes, no entanto. Uma multidão de praticantes de medicina alternativa e complementar também apareceu, guiada por seu fascínio com este tecido medicamente negligenciado.

Se os dois campos parecem opostos e improváveis de trabalharem juntos, uma pessoa está certamente fazendo isso acontecer: o fundador da conferência e diretor executivo Thomas Findley, doutor em medicina física e reabilitação, mas também um praticante de longa data de “Rolfing”.

Também conhecido como “Integração Estrutural”, Rolfing é uma forma alternativa de terapia energética. O método crê que essa rede de tecidos conjuntivos chamados coletivamente de fáscia realinha e equilibra todo o corpo, potencialmente reduzindo desconforto e aliviando a dor.

Findley acha que as respostas que ele procura poderiam estar escondidas na fáscia – essa parte misteriosa do corpo da qual ninguém parece entender direito.

Unindo terapeutas alternativos com pesquisadores, o médico espera estimular descobertas. Ele lembra que, quando estava na escola de medicina, as células gliais (tipo celular predominante no sistema nervoso central) não tinham função.

“Sabemos agora que [as células gliais] têm uma função importante na memória e fazem todo tipo de coisas”, diz. “E quanto a fáscia? Há quem diga que não tem nenhuma função. Bem, eu suspeito que vamos encontrar as principais funções da fáscia, assim como nós encontramos as principais funções das células gliais”, argumenta.

O campo de estudo

No lado científico das coisas, o campo da pesquisa sobre fáscia tem crescido consideravelmente nos últimos anos, embora não tenha a coerência de outras áreas mais bem estabelecidas de investigação fisiológica.

Durante décadas, dissecações e representações anatômicas apresentaram o corpo como despojado de tecidos fasciais, e a maioria dos livros de fisiologia fazem pouca menção a tal conjunto.

“A maioria dos cientistas”, diz Wallace Sampson, cético da medicina alternativa e professor emérito da Universidade de Stanford (EUA), “mesmo aqueles que desconfiam de terapias alternativas, admitem que o campo de pesquisa em fáscia é um campo negligenciado, que continua a ser extremamente subinvestigado”.

Com isso, Sampson quer dizer que não se trata mais de achar que fáscia é uma besteira, que não existe, e sim de não podermos dizer nada de concreto sobre ela, porque pouco se a tem estudado.

Por outro lado, John Hutchinson, professor de biomecânica da Universidade de Londres (Reino Unido), observa que a fáscia continua a ser um tecido pouco estudado porque é algo muito complexo, de modo que certamente demanda muito tempo.

Já fazem quase sete anos desde que o primeiro Congresso de Pesquisa sobre Fáscia ocorreu, e Findley e sua conferência de fato tem feito progresso e conquistado a atenção de muitos cientistas respeitados, como o mundialmente conhecido biomecânico Peter Huijing.

No início, ele estava relutante em participar do congresso por medo de que isso prejudicaria sua reputação. Hoje, Huijing é um dos principais palestrantes da conferencia e até convenceu sua instituição de origem – a Universidade Vrije em Amsterdam, na Holanda – a hospedá-la um ano.

No entanto, “as principais funções” da fáscia ainda têm de revelar-se. Até o momento, não houve nenhum grande estudo que estabeleceu uma ligação clara e causal entre as propriedades moleculares, celulares ou biomecânicas da fáscia e o tratamento eficaz da dor, de lesões ou de doenças – pelo menos para a satisfação da comunidade científica mais ampla.

O que realmente sabemos sobre fáscia?

Intuitivamente, faz sentido que um tecido encontrado em todo o corpo abrigue alguma forma de significado médico ou terapêutico. O problema é que “intuitivamente” não é o bom o suficiente para a ciência.

Pesquisadores distintos do assunto, como Robert Schleip, da Universidade de Ulm (Alemanha), expressam frustrações sobre o que chamam de “a tendência atual entre os terapeutas corporais de atribuir qualquer coisa maravilhosa ou surpreendente para as propriedades de fáscia”.

“Nosso grupo de pesquisa tem recebido um número quase exponencialmente crescente de pedidos de curandeiros entusiásticos e professores de artes marciais em todo o mundo que desejam que nós santifiquemos as suas alegações de que a contração da fáscia fornece a explicação para poderes milagrosos que eles observaram. Enquanto eu acredito que a rede fascial desempenhe um papel muito maior no funcionamento humano do que anteriormente assumimos na medicina ortopédica, tenho medo de que tais reivindicações e projeções estejam minando a seriedade da investigação”, resume.

De fato, as investigações científicas sérias sobre a fáscia tem crescido recentemente, como evidenciado por um aumento contínuo em referências a tal rede de tecidos em artigos científicos desde 1960. No entanto, pouco se pode concluir disso tudo.

Seis artigos científicos sobre o assunto foram analisados pelo já mencionado John Hutchinson e por Silvia Blemker, engenheira biomédica da Universidade de Virginia (EUA).

Blemker diz que os estudos clínicos fornecem evidências para apoiar o papel da fáscia na saúde e na doença, mas são “pequenos pedaços e peças do quebra-cabeça e, em muitos aspectos, não se encaixam dentro de modelos conceituais de processos de doenças”. Por isso, é compreensível que estes estudos obtenham resistência da comunidade científica no geral.

Nenhum dos estudos com roedores pareceu particularmente importante para Hutchinson. Como parte de um esforço contínuo, Hutchinson diz que é possível que esses estudos eventualmente se encaixem com outros e levem a algumas melhorias no entendimento do assunto – ou não.

Ambos Hutchinson e Blemker falaram coisas boas sobre o trabalho de Huijing, mas eles concordam que é um tema que levanta mais perguntas do que respostas.

Os cientistas sabem, por exemplo, que a fáscia rodeia, separa e conecta os músculos de todo o corpo. De acordo com Blemker, Huijing e seus colegas desenvolveram uma longa linha de pesquisa demonstrando que a ubiquidade da fáscia no corpo lhe permite transmitir algum grau de força dentro e entre os músculos, mas “esta linha de pensamento ainda não foi adotada pela comunidade biomecânica convencional porque ainda não se encaixa dentro do nosso modelo conceitual da função musculoesquelética”.

“Não há dúvida de que o trabalho de Huijing é fascinante”, acrescenta Hutchinson, “e há aspectos sobre a transmissão de força miofascial que podem estar certos. Nós apenas não sabemos quão certos e generalizáveis eles são, ainda”.

Pelo menos aos olhos de Hutchinson e Blemker, os estudos sérios feitos até agora são interessantes e merecedores de uma investigação mais aprofundada, mas quaisquer benefícios terapêuticos da manipulação fascial permanecem pouco claros.

O futuro da pesquisa

Para que a pesquisa nesse campo realmente leve a algum lugar, ainda há muito que precisa se ajeitar primeiro.

Por exemplo, as limitações de linguagem.

Uma edição recente da revista Journal of Bodywork and Movement dedicou nada menos que seis editoriais para falar sobre a falta de acordo sobre o que deve ou não deve ser referido como “fáscia”.

A questão da nomenclatura também foi trazida para debate em um editorial da Universidade de Padova feito pela anatomista Carla Stecco. Ela resume o problema da seguinte maneira: “Fáscia é muitas vezes descrita como um tecido onipresente que permeia o corpo humano, organizado como uma rede tridimensional que envolve, suporta, suspende, protege, se conecta e divide fibras musculares esqueléticas e viscerais do corpo. Se concordarmos com essa ampla definição, fáscia poderia incluir todos os tecidos conjuntivos, frouxos ou densos, regulares e irregulares, com tantas funções que seria impossível de estudar e compreender a partir de um ponto de vista científico”.

De certa maneira, o uso inconsistente de termos anatômicos também torna difícil a comparação de resultados entre pesquisas, bem como o ato de tirar conclusões generalizadas. Este é um problema sério que vai certamente brecar o progresso na área, se algo não for feito em direção a uma padronização.

Mas, mesmo depois que esse problema for resolvido, a pesquisa no campo ainda tem um longo caminho a percorrer.

Demonstrar os benefícios terapêuticos da manipulação fascial não é algo que pode ser realizado por meio de apenas linguagem e pensamento, como tem sido feito até agora.

É preciso fazer isso através da matemática, de estatísticas, da observação e da validação por observação repetida. O jeito é esperar para ver se os cientistas, com a ajuda dos terapeutas alternativos, serão capazes de dominar esse desafio. [io9]

Deixe seu comentário!