Coronavírus: o mistério dos pacientes assintomáticos

Por , em 1.06.2020

Três quartos dos passageiros do navio Diamond Princess que testaram positivo para Covid-19 não possuíam nenhum sintoma

Os cientistas já sabem há algum tempo que a atual pandemia de Covid-19 é tão difícil de ser controlada, entre outras razões, porque as pessoas são capazes de espalhar o vírus mesmo sem ter nenhum sintoma da doença.

No entanto, para chegar à essa conclusão, os especialistas percorreram um longo caminho investigativo.

E o trabalho está longe de terminar: de acordo com os pesquisadores, é essencial entender quantas pessoas são afetadas dessa maneira e como esses “espalhadores silenciosos” podem estar alimentando o surto da doença.

Cingapura: o começo da investigação

No começo da pandemia, o chefe de doenças transmissíveis do Ministério da Saúde de Cingapura Vernon Lee se viu com um mistério nas mãos: pessoas que não se conheciam de alguma forma pareciam ter se infectado.

Os casos simplesmente não faziam sentido, pelo menos não de acordo com o que sabíamos sobre o coronavírus naquela época. Então, Lee, seus colegas cientistas e a polícia de Cingapura iniciaram uma investigação a fim de gerar um mapa detalhado da transmissão da doença, algo conhecido como “rastreamento de contatos”. Esse sistema é vital para identificar os envolvidos em um surto e ajudar a eliminá-lo.

O que eles descobriram mudou a forma como os cientistas e as autoridades de saúde viam a doença, bem como as recomendações para evitá-la.

Se antes a indicação era ficar em casa ao menor sinal de tosse, febre ou falta de ar, considerados os principais sintomas de Covid-19, agora os especialistas haviam descoberto que pacientes assintomáticos podiam transmitir o vírus também. Era necessário dobrar os cuidados para tentar conter o espalhamento da doença.

O mapa da transmissão do vírus em Cingapura

Janeiro. No dia 19, um casal – ambos com 56 anos – recém-chegado de Wuhan, na China, participou de uma missa em uma igreja de Cingapura. Embora viessem do epicentro de uma nova pandemia, eles se sentiam muito bem. A falta de sintomas parecia sugerir que era impossível que transmitissem a doença.

Tudo mudou no dia 22: a mulher começou a ficar doente, seguida por seu marido dois dias mais tarde. Ao longo da semana seguinte, três outros cidadãos de Cingapura também testaram positivo para coronavírus.

A princípio, os médicos ficaram completamente chocados. Eles não tinham ideia de como tais pessoas haviam ficado doentes: nenhum conhecia ou tinha tido contato com o casal após eles desenvolverem sintomas.

O trabalho dos investigadores, que entrevistaram nada menos que 191 membros da igreja, identificando 142 que haviam estado lá no domingo fatídico, foi o que estabeleceu que dois dos cingapurianos infectados haviam sido provavelmente contaminados na missa atendida pelo casal chinês. Talvez eles tivessem se cumprimentado ou conversado durante o serviço, momento no qual a transmissão provavelmente ocorreu.

O que era ainda mais intrigante é que o terceiro paciente cingapuriano infectado, uma mulher de 52 anos, tinha ido à missa na mesma igreja somente mais tarde naquele mesmo dia. Através de gravações de câmeras, os investigadores descobriram que ela se sentou no mesmo banco que o casal chinês havia ocupado de manhã. Possivelmente, eles haviam tocado os assentos, ou partículas respiratórias de alguma forma foram parar – e permaneceram – nas superfícies do banco.

Era uma conclusão aterrorizante. De alguma forma, apesar de não apresentarem sintomas e não se sentirem doentes, duas pessoas conseguiram espalhar eficazmente o vírus por Cingapura.

Transmissão pré-sintomática

O resultado dessa investigação foi a descoberta do que é conhecido como “transmissão pré-sintomática”, na qual uma pessoa infectada, mas que ainda não desenvolveu sintomas clássicos, se torna um vetor de espalhamento da doença.

Este e outros estudos revelaram um período crítico de 24 a 48 horas antes do início visível da doença no qual as pessoas podem ser altamente infecciosas. Talvez esse momento assintomático seja o mais infeccioso.

Saber disso faz toda a diferença. Uma vez que uma pessoa desenvolve sintomas, ela deve avisar todos aqueles com quem teve contato pelo menos dois dias antes, de forma que eles possam se isolar no período em que estão mais infecciosos, por exemplo.

Mas como exatamente a Covid-19 pode ser transmitida sem uma tosse virulenta projetando gotículas contaminadas?

A investigação continua

Essa é uma pergunta ainda aberta. Uma das hipóteses dos cientistas é que simplesmente respirar ou conversar com alguém é o suficiente para transmitir a doença através de partículas respiratórias.

Se o vírus já estiver se reproduzindo no seu sistema respiratório, mesmo que você não tenha nenhum sintoma, é possível que ele seja transmitido em cada exalação sua.

Outra teoria é que o coronavírus pode ser transmitido pelo toque. Se o vírus for parar na mão de alguém (porque uma pessoa infectada tocou o rosto, por exemplo), tudo que essa mão tocar em seguida tem um certo potencial, ainda não determinado, de espalhar do vírus.

Os assintomáticos: aqueles que nunca desenvolvem sintomas

Além da transmissão pré-sintomática, existe a assintomática. Nesses casos, as pessoas nunca desenvolvem sintomas.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com a enfermeira Amelia Powell, que trabalha no Hospital de Addenbrooke, em Cambridge, no Reino Unido. Em abril, ela testou positivo para coronavírus e ficou em isolamento, sem jamais sentir-se mal. “Eu não tinha nada, literalmente – eu estava me exercitando dentro de casa, comendo normalmente, dormindo normalmente”, contou à BBC.

Os cientistas sabem que esse tipo de transmissão é possível há muito tempo. No final do século passado, por exemplo, um caso famosíssimo foi descoberto em Nova York: o da cozinheira irlandesa Mary Mallon. Em casa após casa que ela havia trabalho, as pessoas estavam pegando febre tifoide, enquanto ela permanecia aparentemente saudável.

Eventualmente, a conexão com Mary foi estabelecida, e foi confirmado que ela era uma portadora silenciosa – e espalhadora involuntária – da doença. A coitada, apelidada de “Maria Tifoide”, foi obrigada a viver em confinamento por 23 anos até sua morte, em 1938.

Voltando ao coronavírus, no momento, é impossível saber quantos casos de infecção assintomática existem. A descoberta de Amelia, por exemplo, só ocorreu porque ela fazia parte de um estudo envolvendo todos os funcionários de seu hospital. A pesquisa revelou que até 3% de mais de 1.000 pessoas eram positivas e assintomáticas no momento do teste.

Uma proporção ainda maior de casos assintomáticos foi encontrada no navio Diamond Princess, enquanto ele navegava pela costa do Japão no início deste ano. Apelidado de “placa de Petri”, nada menos do que cerca de 700 passageiros do navio testaram positivo para Covid-19, sendo que três quartos não apresentavam sintomas.

Transmissão assintomática: o que sabemos até agora

Uma análise de 21 projetos de pesquisa liderada pelo professor Carl Heneghan, da Universidade de Oxford (Reino Unido), indicou uma enorme variedade de possibilidades para quantos casos de Covid-19 são assintomáticos: de 5% a 80% deles.

Isso porque “não existe um único estudo confiável para determinar o número de assintomáticos”, principalmente porque a triagem para Covid-19 costuma ser realizada apenas em pessoas com sintomas – esse é o foco principal da política de testes em vários países, incluindo o Brasil.

Hall receia que casos assintomáticos possam estar impulsionando a pandemia. “Se você tem pessoas que não sabem que estão doentes enquanto usam transporte público e instalações de saúde, isso inevitavelmente aumentará a transmissão. Qualquer intervenção baseada apenas em pessoas que chegam aos cuidados de saúde primários quando apresentam sintomas lidará apenas com metade do problema”, argumentou.

Use máscara, lave as mãos e mantenha distância

Conforme as medidas de quarentena são apaziguadas mundo afora, os médicos temem que o grupo de pessoas que carregam invisivelmente a doença aumente.

É por esse motivo que é importante manter o distanciamento social o máximo possível e, quando não, usar máscara. A lógica por trás dessa política não é se proteger, e sim proteger aos outros, caso você seja um espalhador silencioso da doença.

Alguns profissionais de saúde pensam que a máscara distrai as pessoas de outras medidas importantes, como lavar as mãos e manter a distância. Mas os governos parecem estar convencidos dos benefícios de cobrir o rosto.

Enquanto isso não vai parar a pandemia por si só, certamente vale a pena, uma vez que ainda sabemos muito pouco sobre a situação dos casos assintomáticos. [BBC]

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