A origem dos nossos dedos é deste animal de 375 milhões de anos

Por , em 17.06.2020

Você já deve ter ouvido essa “historinha”: os ancestrais dos primeiros vertebrados que conquistaram a terra eram peixes.

Eventualmente, as barbatanas desses peixes se transformaram em membros e os animais puderam finalmente se arrastar pelo chão firme.

Legal. Mas, do ponto de vista evolucionário, como exatamente isso aconteceu? Como foi que os peixes se transformaram em tetrápodes, ou seja, em vertebrados terrestres que possuem quatro membros?

Bom, isso é uma coisa um pouco difícil de se determinar por causa da escassez de fósseis que documentam tal transição.

Ou era, até agora. A descoberta de um esqueleto completo de um peixe de 375 milhões de anos pode ser a evidência que faltava para confirmar o que os cientistas supõem ser a origem das mãos e dos dedos e, portanto, o surgimento dos tetrápodes.

Tetrápodes: a origem

Todos os tetrápodes – uma superclasse que inclui todas as aves, bem como alguns mamíferos, anfíbios e répteis – têm “mãos”, só que diferentes entre si. No caso das aves, por exemplo, formam asas. Já nos elefantes, suportam membros tão pesados quanto troncos de árvore.

Dito isto, mãos são mãos em todos os casos: sua estrutura básica é muito semelhante. Isso foi notado por Charles Darwin já em 1859, quando ele apontou a “curiosidade” de mãos tão diferentes – como a de um homem, feita para “pegar”; a de uma toupeira, feita para cavar; as patas das pernas dianteiras de um cavalo; as asas de um morcego etc – serem todas construídas no mesmo padrão, incluindo os mesmos ossos, nas mesmas posições relativas.

Darwin é um cientista incrível e o pai da teoria da evolução. Em sua icônica obra A Origem das Espécies, ele formulou a hipótese de que animais tão diversos compartilham o mesmo padrão porque são todos descendentes de um ancestral comum, um animal que certamente possuía membros com dígitos (dedos).

Nos 160 anos seguintes ao desenvolvimento dessa ideia revolucionária, biólogos do mundo todo realizaram diversos experimentos que provaram que Darwin estava certo. Eles descobriram que a ancestralidade compartilhada dos tetrápodes veio dos peixes; que os ossos que compõem a mão humana também são encontrados em sapos, pássaros e baleias; e que determinados genes controlam o desenvolvimento das mãos, asas e nadadeiras, entre outras variações.

Ok. Mas qual o primeiro capítulo desta história? Em que momento exato a mão e o punho evoluíram dos ossos da nadadeira de um peixe ancestral?

Para determinar isso, os cientistas precisavam de fósseis relativamente inteiros de criaturas que representassem a transição entre peixes totalmente aquáticos e tetrápodes terrestres. Ou seja, eles precisavam encontrar a criatura pioneira que decidiu sair da água, com seus curiosos membros com dígitos.

Os elpistostegalianos

Em março deste ano, cientistas da Universidade de Quebec (Canadá) e da Universidade Flinders (Austrália) descreveram um fóssil completo de um peixe de 375 milhões de anos, o Elpistostege watsoni.

Esses animal possuía os ossos das barbatanas intactos, e estes eram comparáveis aos ossos que compõem os nossos dedos. Sendo assim, os pesquisadores demonstraram pela primeira vez que os dígitos (os dedos) na verdade evoluíram antes dos vertebrados saírem da água.

Até então, a compreensão dos cientistas da transição evolutiva entre peixes e os primeiros tetrápodes dependia principalmente de pedaços de fósseis espetaculares que pareciam ser uma ponte entre os dois grupos, como o peixe Panderichthys rhombolepis, da região do Báltico, com cerca de 384 a 379 milhões de anos. Esse animal possuía um úmero alongado e uma ulna (osso do braço e do antebraço, respectivamente, em tetrápodes), fornecendo algumas das primeiras pistas sobre o grupo de peixes mais próximo aos tetrápodes.

Esse grupo, ao qual o Panderichthys pertencia,foi nomeado de “elpistostegaliano”, em homenagem ao então pouco conhecido Elpistostege do leste do Canadá.

Em 2006, pesquisadores descobriram outro peixe elpistostegaliano, o Tiktaalik roseae, de 380 milhões de anos, no Ártico canadense. Sua barbatana peitoral era altamente avançada, contendo ossos de braço bem desenvolvidos e articulações móveis de punho. Estranhamente, seu crânio também tinha características compartilhadas por tetrápodes.

Estes fósseis pareciam indicar que várias características marcantes dos tetrápodes se originaram na água, incluindo ossos e articulações usadas mais tarde em terra. Mas o que esses peixes não pareciam ter eram dedos. Será que estes só evoluíram mais tarde, depois que os tetrápodes já haviam reivindicado o chão firme?

O Elpistostege descoberto em 2010 em Miguasha, um Patrimônio Mundial da UNESCO em Quebec (EUA), iluminou essa questão. Primeiro fóssil completo do membro fundador do grupo elpistostegaliano, ele permitiu que os cientistas propusessem uma teoria diferente de como os dedos evoluíram e deram luz a estruturas de mãos existentes em mais de 33.800 espécies de tetrápodes vivos hoje, incluindo nós.

De 1937 a 2010

O Elpistostege watsoni é conhecido desde 1937, embora naquela época os cientistas só tivessem encontrado um fragmento do teto de seu crânio. Mas eles já suspeitavam que os tetrápodes haviam evoluído de peixes com nadadeiras carnosas e lobadas, criaturas de um grupo agora raro cujos representantes vivos incluem o celacanto e o peixe pulmonado.

Infelizmente, não se conhecia nenhum fóssil com anatomia intermediária para confirmar essa suspeita, então, quando o paleontologista britânico Thomas Stanley Westoll descobriu um pedaço do teto do crânio do Elpistostege watsoni, lhe deu este nome a partir do grego para “esperado” e “teto” na esperança de que fosse o muito procurado espécime de transição entre peixes com nadadeiras carnosas e lobadas e os primeiros animais de quatro patas.

Naquele momento, Westoll pensava que o Elpistostege watsoni era um anfíbio, o que faria sentido para uma criatura entre peixes e tetrápodes. Era uma teoria interessante, mas dificílima de se provar porque pouquíssimo era conhecido do animal.

Somente 30 anos mais tarde outros pesquisadores encontraram mais fragmentos do Elpistostege, determinando que se tratava de um peixe com nadadeiras lobadas altamente avançado, não um anfíbio.

Desta vez, os cientistas fizeram o enorme favor de registrar a localização estratigráfica exata em que o fóssil foi encontrado: 90 metros acima das camadas mais baixas de uma unidade geológica distinta conhecida como Formação Escuminac.

Nos anos que se seguiram, vários cientistas retornaram a essa parte da Formação Escuminac e, mesmo sem encontrar novas peças do quebra-cabeça, começaram a entender melhor o ambiente em que o animal viveu, um canal que alimentava um estuário. Isso fez com que eles percebessem que o Elpistostege era o maior e provavelmente o principal predador das águas que compartilhava com outras 20 espécies de peixes.

Eventualmente, em 2010, o diretor de Miguasha e naturalista Benoît Cantin descobriu o maior e mais importante fóssil já encontrado na Formação Escuminac: um esqueleto completo de 1,57 metros de Elpistostege.

Tomografia e recuperação

Primeiro, os cientistas criaram uma imagem do peixe ainda envolto na rocha usando um aparelho de tomografia. Isso mostrou que o espécime estava absolutamente completo, com todos os ossos preservados. Era uma vitória, mas a resolução não era boa o suficiente para revelar a estrutura interna desses ossos.

Então, o fóssil foi enviado para a Unidade de Tomografia Computadorizada de Raios-X de Alta Resolução da Universidade do Texas (EUA), onde cada pedaço seria escaneado com a maior precisão disponível até então.

Concluído esse escaneamento, os pesquisadores removeram a rocha circundante do fóssil pouco a pouco e, depois de alguns meses, tinham o espécime inteiro para o contentamento dos olhos, tanto no mundo virtual quanto no real.

Suas barbatanas peitorais certamente se revelaram as partes mais incríveis de seu corpo, porque ninguém tinha visto uma barbatana peitoral completa de um elpistostegaliano antes. À primeira vista, ela se parecia bastante com à de Tiktaalik, mas tinha ossos adicionais. O que eram?

Dedos

Em 2014, em colaboração com pesquisadores australianos, a equipe agora internacional utilizou vários métodos diferentes para processar as imagens feitas do peixe e encontrar a melhor combinação que permitisse aos cientistas isolar e estudar digitalmente cada osso.

Os resultados preliminares não só confirmaram a presença de ossos extras na barbatana do Elpistostege, como os mostraram com muito mais detalhes. Tratava-se de uma série de vários ossos pequenos e bem compactados.

Normalmente, o final da barbatana peitoral contém pequenos ossos chamados radiais que sustentam os raios das barbatanas. Enquanto estes estavam no lugar certo para serem radiais, o grande número de ossos e a maneira como alguns estavam dispostos sugeriam que eram outra coisa.

A equipe teorizou que esses ossos nunca vistos antes eram dígitos semelhantes aos encontrados nos dedos dos tetrápodes. Os pesquisadores identificaram dois dígitos compostos por múltiplos ossos articulados, bem como três outros possíveis, cada um composto por um único osso.

Árvore genealógica

Para determinar o lugar de Elpistostege na árvore genealógica, a equipe comparou o fóssil a outras espécies, prestando atenção às características distintas compartilhadas.

Após a realização de uma análise filogenética de 202 características em 43 espécies, os cientistas concluíram que o Elpistostege é mais intimamente relacionado a todos os tetrápodes vivos (bem como seu último ancestral comum) do que o Tiktaalik.

Provavelmente, são as suas características únicas de dígitos na barbatana peitoral, que não são totalmente preservadas nos fósseis de Tiktaalik, que o levam mais para cima na escada evolucionária.

Nasce a “mão”

Foi assim que os pesquisadores chegaram à conclusão de que a estrutura da mão dos tetrápodes nasceu em peixes com nadadeiras lobadas cerca de 380 milhões de anos atrás.

Esses “dígitos primitivos” deviam servir para suportar o peso do peixe, uma vez que muitos ossos minúsculos alinhados nessa região dariam à parte externa da barbatana a flexibilidade necessária para empurrar o peixe para cima.

E por que um peixe iria querer se levantar dessa forma? Para respirar.

Na parte de trás do crânio de Elpistostege há um par de buracos chamados espiráculos. Alguns peixes modernos que respiram ar têm espiráculos também (como o já comentado peixe pulmonado, da classe Dipnoi). Supondo que a estrutura tivesse o mesmo objetivo no Elpistostege, a capacidade de usar suas barbatanas para dar uma esticadinha para cima nos rios e estuários rasos que habitava a fim de respirar um pouco de ar fresco poderia ter sido vantajosa.

Inclusive, os cientistas dizem que o Elpistostege não era necessariamente exclusivamente aquático. Se, hoje em dia, peixes com barbatanas menos poderosas (como, novamente, o peixe pulmonado e alguns peixes-gato) podem se impulsionar pela terra por curtos períodos de tempo, o Elpistostege devia ser ainda mais capaz de se aventurar em terra.

E quanto à genética?

Encontrar criaturas transicionais é incrível, mas não é o fim da história. Ainda temos que entender muito sobre as mudanças genéticas e desenvolvimentistas que impulsionaram a transformação das barbatanas em membros.

Sabemos que deve ter havido pelo menos dois eventos evolutivos diferentes, um que produziu dígitos e outro que produziu pulsos, porque peixes pulmonados atuais têm radiais (ossos de pulso) sem dígitos.

A descoberta do Elpistostege complica um pouco mais a história porque sugere que os radiais dos peixes pulmonados e outros com nadadeiras lobadas não são equivalentes a dígitos. Além disso, uma vez que preserva tanto os ossos do pulso e dos dedos quanto os raios das barbatanas, o Elpistostege sugere que a perda dos raios deve ter sido ainda outra fase separada na evolução da mão.

Ou seja, temos um longo caminho a traçar na nossa compreensão dos mecanismos genéticos e de desenvolvimento que impulsionaram a evolução dessa criatura enigmática. A boa notícia é que o Elpistostege tem tudo para ser uma “Pedra de Roseta” na resolução do mistério de como membros evoluíram a partir das barbatanas, ou melhor, de como os vertebrados conquistaram a terra. [ScientificAmerican]

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