Porque a morte de 17 pessoas teve uma cobertura da mídia muito maior do que o massacre de 2 mil

Por , em 21.01.2015
Hashtag de apoio a revista parisiense

Hashtag de apoio a revista parisiense

Considere dois trágicos acontecimentos que ocorreram no início do mês.

Uma pequena célula de terroristas islâmicos atacaram cartunistas na revista satírica “Charlie Hebdo” e clientes em um supermercado de Paris, matando 17 pessoas e provocando indignação, solidariedade e apoio internacionais. A hashtag #JeSuisCharlie estava entre os tópicos mais comentados no mundo e líderes de diversos países foram às ruas para marchar em apoio à resiliência parisiense.

No norte da Nigéria, enquanto isso, um exército de extremistas islâmicos arrasou a vila de Baga, matando cerca de 2 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças que não puderam fugir dos ataques. No final da semana, o mesmo exército – Boko Haram – introduziu uma nova arma terrível de guerra na vizinha cidade de Maiduguri. Eles prenderam explosivos ao corpo de uma menina de 10 anos e a enviaram ao principal mercado de aves da cidade. A menina foi parada por guardas com um detector de metais na entrada do mercado, mas a bomba foi detonada e matou pelo menos 19 pessoas. Não houve uma campanha de hashtag ou marcha globais para as vítimas destes massacres.

Mesmo na Nigéria, nos três dias em que a história estava se desenvolvendo, a violência em Paris recebeu mais atenção da mídia do que os massacres em Baga e Maiduguri. O presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, condenou os ataques franceses, mas não mencionou o massacre em seu próprio país. A cinco semanas de uma eleição presidencial, Jonathan pode estar com medo de lembrar seus eleitores de que ele esteve à frente da Nigéria em um ano em que a Boko Haram já matou pelo menos 4 mil civis.

Atenção desigual da mídia

Há muitas razões por que os ataques a alvos em Paris receberam muito mais atenção da mídia do que os ataques em Baga.

Paris é uma cidade global altamente conectada com milhares de jornalistas em exercício, enquanto Baga é isolada, difícil e perigosa de se chegar. Os ataques contra “Charlie Hebdo” tiveram como alvo jornalistas, e é compreensível que seus pares cobrissem a morte de seus semelhantes. Os ataques em Paris foram um choque e uma surpresa, enquanto as mortes nas mãos de Boko Haram se tornaram tristemente comuns em uma insurgência que já custou mais de dez mil vidas desde 2009.

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É quase impossível que audiências em países mais desenvolvidos simpatizem com os detalhes dos ataques de Baga, nos quais os civis fugiram de um exército de saqueadores para os pântanos do lago Chade, onde enfrentaram ataques de hipopótamos. Em contrapartida, é tragicamente fácil para a maioria dos norte-americanos e europeus imaginar terroristas atacando suas cidades.

Ou seja: os ataques em Baga e Maiduguri parecem incrivelmente distantes, enquanto os ataques em Paris parecem locais, relevantes e urgentes, mesmo para as pessoas equidistantes das duas situações.

Em parte, é difícil imaginar os acontecimentos na Nigéria, porque nos deparamos com tão poucas notícias africanas em geral.

Escassez de notícias

O Media Cloud, ferramenta desenvolvida no Centro para Mídia Cívica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e no Centro Berkman para Internet e Sociedade da Universidade de Harvard (EUA), mede a atenção comparativa com temas e locais em diferentes segmentos da mídia.

Um estudo feito pelo portal Science 20 em abril de 2014 sugere que os meios de comunicação publicam de 3 a 10 vezes mais matérias sobre a França do que sobre a Nigéria. Esta disparidade é impressionante, já que a população da Nigéria (estimada em 173 milhões) é quase três vezes o tamanho da população da França (66 milhões).

É uma má notícia para aqueles que esperam que a mídia online mude os padrões existentes de atenção da imprensa: enquanto emissoras de rádio noticiaram 3,2 vezes mais matérias sobre a França em relação à Nigéria, os meios de comunicação online publicaram mais de 10 vezes mais notícias francesas do que nigerianas (10,4 para ser preciso).

Nós tendemos a ler sobre países como a Nigéria só quando estão em crise, a partir de um ataque terrorista ou epidemias como a do ebola. Apesar da magnitude chocante dos ataques em Baga, a história pode parecer previsível, já que as notícias que recebemos da Nigéria geralmente não são boas.

Se parece que os ataques na Nigéria estão acontecendo em algum lugar incompreensivelmente longe, aqueles em Paris parecem ser perto de casa e, como resultado, muitos comentaristas têm refletido sobre a tragédia na capital francesa.

Para David Brooks, do “New York Times”, os ataques são um lembrete da importância de dissidentes e controversos pontos de vista, enquanto Teju Cole, da revista “The New Yorker”, argumenta que podemos condenar o ataque à liberdade de expressão, sem apoiar o discurso provocante e muitas vezes ofensivo do “Charlie Hebdo”.

Para alguns, os ataques sugerem que o Islã é inerentemente violento. Outros lembram-nos de Ahmed Merabet, o policial muçulmano que morreu protegendo a revista ou Lasana Bathily, o funcionário de supermercado muçulmano que escondeu clientes judeus no congelador da mercearia kosher para protegê-los, e observam que a grande maioria dos muçulmanos condena o terrorismo.

Seja #JeSuisCharlie ou #JeSuisAhmed, milhões de nós, aparentemente, nos vemos como parte da tragédia em Paris. Não é assim para as mortes em Baga. Nós não sabemos os nomes dos pais que se sacrificaram para salvar seus filhos, ou aldeões que abrigavam famílias que fugiam. Além de Abubakar Shekau, líder do Boko Haram, sabemos pouco sobre os homens que se tornaram esse exército brutal ou suas queixas contra o governo nigeriano. E nós estamos em grande parte livres da especulação sobre o que os ataques a Baga significam para a relação entre os grupos seculares e religiosos, entre o Islã e outras religiões, para a estabilidade da Nigéria e sua sobrevivência como um único estado.

Com tão pouca discussão sobre questões africanas na mídia, não é surpreendente que a maioria dos especialistas seja mal qualificada para comentar sobre o massacre em Baga.

Não há respostas fáceis

Mas o conflito com o Boko Haram deixa poucas respostas fáceis, mesmo para aqueles que seguem de perto a situação. O curso mais óbvio de ação – apoiar as forças armadas nigerianas – é um passo indesejável, já que os militares nigerianos cometeram graves violações dos direitos humanos na busca pelo Boko Haram.

Em 2013, Baga sofreu outro massacre, desta vez do exército nigeriano, que queimou milhares de casas e matou cerca de 200 civis, castigando a cidade por abrigar o Boko Haram.

Conselheiros militares norte-americanos também vêm se frustrando com a corrupção sistêmica da força militar nigeriana e da dificuldade de direcionar os recursos para combater Boko Haram. As forças dos EUA chegaram à Nigéria para ajudar a procurar as mais de 200 meninas sequestradas de uma escola em Chibok em abril de 2014, mas até julho as forças tinham sido redistribuídas.

A resposta mais provável para o combate ao Boko Haram está em aumentar a cooperação militar internacional. Infelizmente, Camarões, Chade e Níger – os países mais diretamente ameaçados pelo Boko Haram – retiraram recentemente suas tropas da região. O Chade, por exemplo, já acolheu mais de 7 mil refugiados de Baga que procuram refúgio no outro lado da fronteira.

Sem uma resposta fácil para o conflito ou um ponto ideológico para atrelar à tragédia, a resposta daqueles que já ouviram falar do massacre em Baga é um silêncio fúnebre.

E isso não é suficiente.

As centenas ou milhares de mortos em Baga exigem a nossa dor como seres humanos. Eles exigem nosso escrutínio, de modo que a liderança da Nigéria não possa escapar das consequências de sua incapacidade de acabar com o conflito, ou os abusos que os militares nigerianos cometeram. E exigem nossa atenção para que possamos entender as formas que o extremismo tomam no mundo.

A maioria das vítimas do terrorismo islâmico é muçulmana: entre 82 e 97%, de acordo com um estudo de Centro de Contra-Terrorismo dos EUA.

Ataques como o de Paris são chocantes, raros e ganham visibilidade, enquanto os ataques a Baga são comuns – embora a escala do último seja sem precedentes.

Quando entendemos a violência extremista como ataques a alvos desenvolvidos, simbólicos e urbanos, estamos deixando de fora um quadro muito mais amplo e confuso, no qual o extremismo religioso se mistura com as lutas políticas e as vítimas são geralmente anônimas, esquecidas e não celebradas.

Nós fugimos do ponto que os extremistas islâmicos estão em guerra com outros muçulmanos, que a fonte do terror não é uma religião de 1,6 bilhão de pessoas, mas uma interpretação política e perversa feita por alguns.

É correto chorar os mortos em Paris, comemorar a resiliência da cidade e homenagear os heróis. Mas se não formos capazes de nos lamentarmos e de entender bem a situação em Baga, vemos uma imagem do terrorismo que é simplista, clara e profundamente incorreta. [Science 20]

2 comentários

  • Paulo Rhedy:

    Jéssica, seu texto é muito bom em exibir por que de Paris possuir mais visibilidade que Baga. Mas há erros sobre o islã.

  • David Vasconcelos:

    Parabéns! Percebo da mesma forma.

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