Crianças: palmada está ligada a problemas de saúde e antissociabilidade
Desde 2014, vigora no Brasil a Lei 13.010, que ficou conhecida como Lei Menino Bernardo ou Lei da Palmada, que dita que “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto”.
Segundo a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no entendimento da lei, castigo físico é a “ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em sofrimento físico ou lesão”. Tratamento cruel ou degradante é conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize. A legislação atinge não apenas os pais, mas a família em geral, responsáveis, agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou proteger crianças e adolescentes.
Ainda assim, quer você seja um pai que ocasionalmente deu uma palmada em seu filho, um adulto com recordações de palmadas na infância ou mesmo alguém que já observou essa prática em público, é muito provável que você tenha experiência pessoal com o ato de punir crianças mau comportadas com violência.
Atitude normal?
Nos Estados Unidos, a prática continua sendo algo comum. Segundo um estudo de longo prazo disponível na Wiley Online Library, 80% das crianças levaram palmadas entre o jardim de infância e a terceira série. Ainda que todos nós possamos ter nossas opiniões sobre isso “funciona” como método de disciplinar as crianças, o que a ciência nos diz? E quais são os resultados médios para as crianças que apanham?
Recentemente, a dupla de pesquisadores Elizabeth Gershoff, professora de Psicologia da Universidade do Texas em Austin, e Andrew Grogan-Kaylor, professor associado de Serviço Social da Universidade de Michigan, ambas nos Estados Unidos, fizeram uma “meta-análise” – uma revisão de pesquisas existentes sobre as palmadas – para responder a estas perguntas e escreveram um artigo no site The Conversation sobre as descobertas relatadas em seu artigo -, disponível no PubMed.
“Descobrimos que a palmada aumenta significativamente o risco de resultados negativos para as crianças”, escrevem. “Embora esta descoberta não signifique que toda criança vai ter problemas como resultado da palmada, quer dizer que um grande corpo de pesquisa tem mostrado que [esse hábito] aumenta significativamente os riscos de problemas”.
A palmada pode ser boa para as crianças?
Foram incluídos dados de 75 estudos de 13 países que foram realizados ao longo de um período de 50 anos, incluindo mais de 160 mil crianças. A dupla analisou as associações entre as surras e vários diferentes resultados para a criança.
Apanhar não estava ligado com um melhor comportamento da criança. Em vez disso, a palmada estava conectada a um pior comportamento da criança. A palmada foi associada com 13 dos 17 resultados examinados e todos ligados à palmada mostraram resultados prejudiciais.
Quanto mais crianças apanhavam, mais agressivas e antissociais eram. “Nós também descobrimos que as crianças que apanhavam eram mais propensas a ter problemas de saúde mental, relações problemáticas com seus pais e menor capacidade cognitiva”.
No entanto, os pesquisadores afirmam que suas descobertas mais preocupantes eram de que as crianças que recebiam palmadas tinham significativamente mais riscos de serem abusadas fisicamente por seus pais. “Além disso, a ligação entre a palmada e os resultados negativos para as crianças era de dois terços o tamanho da ligação entre o abuso físico e os mesmos resultados negativos”.
Isso poderia significar que a palmada e abusos físicos não são comportamentos categoricamente diferentes, mas sim pontos ao longo de um contínuo de violência contra as crianças. “Os resultados do nosso estudo foram incrivelmente consistentes. Quase todos (99%) dos efeitos com tamanhos estatisticamente significativos indicaram uma ligação entre palmada e resultados negativos para as crianças”, dizem os cientistas.
Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?
Eles, advertem, no entanto, que suas descobertas não podem provar que as palmadas causem os problemas comportamentais. “Poderia muito bem ser que as crianças com mais problemas apanham mais de seus pais”, ponderam.
“Claramente, nós não podemos fazer ‘estudos randomizados controlados’ – isto é, ter um grupo de controle, onde as crianças apanham e outro em que eles não apanham – para determinar se a palmada é a causa de problemas de comportamento das crianças”, explicam. “Por isso, dependemos de estatísticas para saber se esses desfechos são um resultado da palmada ou o comportamento da criança”.
Para desmembrar este problema do ovo e da galinha, vários estudos têm analisado se a ligação vem totalmente do comportamento das crianças e não o contrário – ou seja, se o fato de pais agredirem é que afeta o comportamento dos filhos. Estudos com grandes amostras e estatísticas sofisticadas descobriram que quando as crianças levam palmadas, seu comportamento piora com o tempo, mesmo quando são levados em conta muitos outros fatores, incluindo a extensão em que o uso da palmada dos pais é uma reação a problemas de comportamento prévio das crianças.
Um desses estudos, realizado por Gershoff, descobriu que crianças em idade pré-escolar com problemas de comportamento “suscitaram” mais palmadas dos pais ao longo do tempo. Contudo, as palmadas ainda previram comportamentos problemáticos até quando essas crianças chegaram à terceira série, para além da medida em que as crianças provocaram seus pais a darem palmadas.
Já Grogan-Kaylor trabalhou com dados de uma amostra grande e nacional de crianças dos Estados Unidos. Ele também descobriu que a punição corporal é relacionada ao aumento de problemas comportamentais das crianças, mesmo quando são considerados vários outros fatores.
Os resultados de outros estudos de longo prazo também indicam que a palmada prevê um agravamento dos comportamentos da criança ao longo do tempo, independentemente de quão problemáticas elas são previamente. Por exemplo, a pesquisadora Lisa Berlin, da Universidade de Maryland, nos EUA, descobriu que quanto mais crianças de ano de idade recebiam palmadas, mais agressão elas mostraram um ano mais tarde e mais baixa era sua capacidade cognitiva dois anos depois.
Pais carinhosos
Uma pergunta comum é se palmada é eficaz quando é usada por um pai ou uma mãe que em todos os outros momentos é caloroso e amoroso.
Gershoff e seus colegas analisaram dados de um grande estudo de mães e filhos e descobriu que a palmada aumenta problemas de comportamento, independentemente de quão amorosas as mães são. Amor e carinho de fato levaram a aumentos nos comportamentos positivos das crianças ao longo do tempo, tais como ser carinhosas, educadas e responsáveis.
No entanto, a palmada não faz com que estes comportamentos positivos aumentem. Em vez disso, a prática servia como fator para prever aumentos de problema de comportamento ao longo do tempo, provando que abraços, não tapas, ajudam as crianças a se tornarem indivíduos cuidadosos e responsáveis.
Traço cultural
Alguns pesquisadores, como Kirby Deater-Deckard e Kenneth A. Dodge, argumentaram que a palmada poderia ter resultados positivos quando é considerada uma prática culturalmente aceita. Todavia, a pesquisa científica nas duas décadas seguintes não apoiou esta ideia.
Usando o mesmo estudo de longo prazo com crianças em idade pré-escolar já citado, Gershoff descobriu que a palmada era mais utilizada (o que sugere que era mais culturalmente aceitável) em famílias negras do que em famílias brancas, latinas ou asiático-americanas, mas as palmadas previam aumentos de problemas comportamentais igualmente entre estas quatro raças e grupos étnicos. A palmada não era “melhor” para crianças entre os grupos que a utilizam com frequência.
Um estudo de que a dupla de pesquisadores participou utilizou dados de famílias em seis países diferentes e descobriu que a palmada é vinculada com maior agressividade e ansiedade. Isto se provava verdadeiro mesmo quando pais e filhos acreditavam que a palmada era uma forma aceitável de disciplina em suas comunidades. Assim sendo, a palmada não está relacionada com comportamentos positivos da criança, mesmo quando é apoiada pela cultura da família.
Não há razão para bater
As provas contra palmada são tão fortes que a Academia Americana de Pediatria recomendou que os pais não batam em seus filhos. Nos Estados Unidos, os Centros para Controle e Prevenção de Doenças também recomendaram as campanhas de educação e legislação sejam utilizadas com o objetivo de reduzir a prática.
As Nações Unidas consideram todas as formas de castigo físico como violência e pedem um fim à prática. Um total de 49 países já proibiram todo castigo físico de crianças, incluindo as palmadas dos pais.
“A mensagem de organizações acadêmicas, médicas, de saúde pública e de direitos humanos é a mesma: a palmada é ineficaz e potencialmente prejudicial para as crianças. Ela deve ser evitada para o bem de todas as crianças”, concluem os pesquisadores.
Breve história da palmada
No Brasil, o hábito de bater nas crianças não era comum até a chegada dos europeus. De acordo com a EBC, em seu artigo “Um monstro esconde-se em casa. A violência doméstica contra crianças e adolescentes”, a advogada Danielli Xavier Freitas, em seu resumo histórico da palmada no Brasil, conta que, na época da colonização, chamou a atenção dos padres jesuítas a forma de educação adotada pelos índios.
“Os índios do Brasil nunca batem nos filhos por nenhuma coisa […] não tem pai que açoite o filho e falar alto e de forma ríspida a criança sente muito mais do que lhe bater”, relata o padre Luís da Grã, citado por Viviane Nogueira de Azevedo Guerra no livro “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”.
Os padres da Companhia de Jesus, em 1549, puniam com palmatórias e com o tronco os catequisandos que faltavam à escola jesuítica. “Para eles, o carinho, os vícios e pecados deveriam ser combatidos da mesma forma, com açoites e castigos, com o objetivo ensinar às crianças que a obediência aos pais era a única forma de escapar da punição divina”, conta o texto da EBC. Indignados por causa da violência, muitos indígenas abandonavam os estudos e a doutrina.
Crianças e adolescentes escravos também sofriam agressões, segundo o artigo, especialmente de cunho sexual. Para a autora, estas violências se propagam até hoje, “com o aval da sociedade como forma de educação frente às leis do adulto”. [The Conversation, EBC]
4 comentários
Por espaço reduzido para comentários:
A criança que não é corrigida em casa, é corrigida pela polícia na rua.
Palmada, somente, é válida.
Será? Será que as crianças que são mortas pelos policiais nunca foram corrigidas por seus pais?
Ué! Eu e meus irmãos sempre apanhamos do meu pai e nem por isso tenho esses problemas relatados ai.
Será? Já ouviu falar na síndrome de Estocolmo?