Este é um sintoma da depressão que às vezes nem os médicos conseguem perceber

Por , em 12.02.2019

Sabemos que a depressão é uma doença (pelo menos deveríamos saber) e geralmente a relacionamos à tristeza, falta de motivação e outros sintomas como estes. Isso não está totalmente errado, mas a depressão pode ter características que nem imaginamos, como é o caso da raiva. O portal da Rádio Pública Nacional dos EUA (NPR) fez uma matéria sobre o assunto, contando como médicos e pacientes lidam com essa situação, que nem sempre está descrita nos manuais da medicina.

O texto, assinado pela jornalista Nell Greenfieldboyce, afirma que muitas pessoas, inclusive os médicos, associam a depressão a sentimentos de desesperança, tristeza e falta de motivação ou concentração, mas não à raiva. “Alguns pesquisadores dizem que isso é um problema, já que parece haver uma forte ligação entre irritabilidade e depressão”, escreve Greenfieldboyce.

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Essa afirmação é baseada no que diz o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, livro muitas vezes chamado de “bíblia da psiquiatria”, que, na lista que apresenta de sintomas centrais para a depressão maior, não inclui a raiva.

“(A raiva) não está incluída na classificação adulta da depressão”, diz na matéria o Dr. Maurizio Fava, psiquiatra do Hospital Geral de Massachusetts e professor da Escola de Medicina da Universidade de Harvard. A irritabilidade, o controle reduzido sobre o temperamento da pessoa que resulta em explosões de raiva, é listada, porém, como um sintoma central da depressão para crianças e adolescentes. Fava diz nunca ter entendido a razão para essa condição não ser incluída nos sintomas da depressão para adultos. “Por que alguém que fica irritado e com raiva quando deprimido quando adolescente, de repente deixa de ficar com raiva aos 18 anos?”, ele pergunta.

A psicóloga americana Lisa Firestone publicou um texto no portal Psychology Today em 2017 no qual aborda a importância da raiva para os sintomas da depressão, especialmente quando ela é voltada para dentro. “Um estudo de 2016 descobriu, quando se trata de transtornos emocionais em geral, a presença de raiva tem ‘consequências negativas, incluindo maior gravidade dos sintomas e pior resposta ao tratamento.’ Pesquisadores concluíram que, ‘com base nessas evidências, a raiva parece ser uma uma emoção importante e pouco estudada no desenvolvimento, manutenção e tratamento de distúrbios emocionais’. Quando se trata especificamente de depressão, a ciência tem mostrado cada vez mais como a raiva contribui para os sintomas. Um estudo do Reino Unido de 2013 sugeriu que colocar (a raiva) para dentro e direcioná-la em nós mesmos contribui para a gravidade da depressão”, aponta.

A raiva é um sentimento emocional e físico que faz as pessoas quererem intimidar ou atacar outra, que é vista como ameaçadora. Fava diz que um adulto deprimido, com muita raiva, é frequentemente diagnosticado com transtorno bipolar ou transtorno de personalidade. “Nós vemos em nossas clínicas pacientes que são rotulados como tendo outros diagnósticos porque as pessoas pensam: ‘Bem, você não deveria estar tão irritado se você está deprimido'”, diz Fava.

Como o diagnóstico indica o tipo de tratamento que as pessoas recebem, este erro pode prejudicar a vida de muitas pessoas.

Fava diz na matéria do NPR que aprendeu que, na depressão, a raiva é projetada para dentro. As pessoas deprimidas ficariam com raiva de si mesmas, mas não de outras. Isso não corresponde ao que ele vê em muitos de seus pacientes com depressão. “Eu diria que 1 em cada 3 pacientes relata para mim que eles perdem a paciência, ficam com raiva, jogam coisas ou gritam ou batem a porta”, diz Fava. Depois, essas pessoas ficariam cheias de remorso. Fava acredita que esses “ataques de raiva” podem ser um fenômeno similar aos ataques de pânico. Sua pesquisa descobriu que esse tipo de raiva diminuía na maioria dos pacientes tratados com antidepressivos.

A psiquiatria estudou cuidadosamente como a ansiedade e o humor deprimido são sentidos pelos pacientes, observa Fava, mas a raiva tem sido relativamente negligenciada. “Eu não acho que nós realmente examinamos todas as variáveis ​​e todos os níveis de desregulação da raiva que as pessoas experimentam”, diz ele.

Sintoma comum

Essa visão é compartilhada pelo Dr. Mark Zimmerman, professor de psiquiatria da Universidade Brown, nos EUA. “O campo não atendeu a problemas com raiva. As escalas usadas com maior frequência para avaliar se os medicamentos funcionam ou não no tratamento da depressão não têm itens específicos para a raiva”, observa ele na matéria do NPR. No entanto, Zimmerman diz que os médicos frequentemente vêem um aumento da raiva em pessoas que procuram ajuda médica. “Irritabilidade não é muito menos frequente do que tristeza e ansiedade em pacientes que se apresentam para tratamento psiquiátrico”, diz ele.

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Zimmerman e alguns colegas pesquisaram recentemente milhares de pacientes que faziam sua primeira visita à clínica psiquiátrica ambulatorial do Hospital Rhode Island, também nos EUA. Todos foram questionados sobre o nível de raiva que sentiram ou expressaram na semana anterior. Segundo o pesquisador, dois terços dos indivíduos relataram irritabilidade e raiva notáveis, e aproximadamente metade relatou isso em um nível moderado ou grave.

Outro grande estudo realizado por um grupo de pesquisa diferente analisou mais de 500 pessoas que foram diagnosticadas com depressão grave. Descobriu-se que mais da metade mostrava “irritabilidade / raiva manifesta” e que essa raiva e irritabilidade pareciam estar associadas a uma depressão crônica mais grave.

O texto do NPR descreve o caso de uma enfermeira que passou por esta situação recentemente e descobriu que sua irritabilidade era causada pela depressão. “A enfermeira Ebony Monroe, de Houston, recentemente passou por um período em que ficava rapidamente com raiva de coisas pequenas. Ela não percebeu no momento o que isso poderia significar para sua saúde. ‘Se você tivesse me dito no começo que minha irritabilidade estava relacionada à depressão, eu provavelmente ficaria lívida. Eu não achava que a irritabilidade estivesse alinhada com a depressão’”, diz Monroe na matéria.

Monroe teve a sorte de ter uma amiga preocupada que gentilmente sugeriu que talvez ela devesse conversar com alguém. “A maneira como ela se aproximou de mim diminuiu a parede de raiva e ansiedade, e foi aí que decidi procurar ajuda”, descreve a mulher no texto.

Monroe veio a perceber que os eventos traumáticos de sua infância a deixaram deprimida e cheia de raiva não resolvida. Sem lugar para extravasar a raiva, ela estava atacando seus entes queridos, como sua irmã e marido. Ela diz que sua vida melhorou muito após cerca de um ano de aconselhamento. Ela agora trabalha com um grupo que ajuda as pessoas a reconhecer os sinais de depressão. Sua lista de sintomas que as famílias devem observar inclui “comprar brigas, ser irritável, crítico ou malvado”.

Olhando para dentro

Ainda assim, pessoas com depressão podem ter dificuldade em reconhecer isso em suas próprias vidas. Greenfieldboyce conta que, ao entrar em contato com uma pessoa ligada ao combate à depressão para fazer a matéria, surpreendeu-se ao perceber que o homem não havia feito a ligação entre a doença e a raiva.

“Quando liguei para a Aliança de Apoio à Depressão e Bipolaridade para perguntar sobre a raiva, cheguei ao responsável pela comunicação, Kevin Einbinder. Inicialmente, ele pensou consigo mesmo: ‘Tenho certeza de que alguém certamente lida com raiva, mas não tenho problemas de raiva associados à depressão’. Então ele começou a refletir sobre sua vida com depressão nas últimas três décadas. ‘Pensei em todas as pessoas da minha vida que interagiram comigo – minha família, os conselheiros, psiquiatras, até empregadores, outras pessoas importantes, e percebi que a raiva era um fator subjacente em todos esses relacionamentos’, diz ele”.

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Ele costumava, por exemplo, usar um humor ácido e sarcástico para deixar as pessoas para baixo. ‘Isso realmente afastou as pessoas’, diz Einbinder. Ele também se lembra de ter enviado e-mails furiosos tarde da noite depois de ficar acordado e ruminando sobre coisas que aconteceram durante o dia. Um conselheiro o ajudou a entender por que essa não era uma maneira tão boa de lidar com problemas. No geral, porém, ele e seus médicos nunca se concentraram na raiva.

“Eu acho que isso teria proporcionado uma enorme quantidade de contexto para o que estaria acrescentando à minha depressão e me ajudado, no início da minha vida, com mecanismos de enfrentamento mais eficazes”, diz Einbinder.

Firestone sugere uma abordagem de expressão da raiva, mas de forma saudável, sem rancor em relação ao que nos cerca. “Aceitar que a raiva desempenha um papel em nossa depressão deve ser uma ferramenta poderosa em nossa luta para nos sentirmos melhor. Quando as pessoas expressam a raiva de uma maneira adaptável e saudável, elas se sentem menos deprimidas. Acessar e expressar essa raiva não é uma questão de agir, ser explosivo ou sentir-se amargo em relação ao que nos rodeia. Na verdade, significa exatamente o oposto. É um ato de nos defendermos e aceitar que não somos quem nossas “vozes” nos dizem que somos. É um processo de enfrentar as coisas que nos ferem, mas também de enfrentar o inimigo interno que todos nós possuímos, que nos leva mais fundo ao nosso sofrimento. Quanto mais pudermos tomar o nosso próprio lado e resistir à nossa tendência de direcionar nossa raiva em nós mesmos, mais compassivos e vivos poderemos nos sentir diante de qualquer desafio, incluindo a depressão”. [NPR, Psychology Today]

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